Parecia a máquina a vapor do comboio da Beira Alta ...
O Lima era de Coimbra. Naquela época recuada dos fins dos
anos cinquenta do século passado, frequentava a Escola Jaime Cortesão, ali
mesmo junto ao Mercado da cidade. Naquele estabelecimento de ensino, nunca foi
muito entusiasta dos estudos. Era um sonhador, tinha como maior desejo viajar e
correr mundo. Havia, porém, um problema insolúvel: falta de dinheiro. Teve
então, a ideia peregrina de ir a Lisboa falar com o jornalista Artur Agostinho,
locutor muito conhecido da rádio e que viajava pela Europa, relatando jogos das
nossas equipas de futebol ou de hóquei em patins, sempre que estas se
deslocavam ao estrangeiro para a disputa de provas internacionais. Porque era
um homem de expedientes e decidido, rumou à capital para propor ao jornalista
uma coisa muito simples: carregar-lhe a bagagem sem custos, sempre que o Artur
Agostinho se deslocasse para fora do país. Como troca, apenas o pagamento de
estadia e alimentação, a expensas da Emissora Nacional.
Regressou de Lisboa com um rotundo não, o que aliás nem era
de espantar. Mas o Lima era irrequieto por natureza, sempre na busca de novas
sensações. Um dia, para surpresa do meu pai porque eram amigos,
confidenciou-lhe que ia para Santarém na esperança de ser aceite como forcado
amador do grupo local. E nada o demoveu e partiu. Naturalmente, que quando
chegou à fala com os homens de rija têmpera, foi olhado de lado. Porém, o seu
porte alto, magro e elegante, conferiam-lhe um benefício que lhe permitiu
entrar no grupo. Várias vezes saltou das trincheiras para a praça ao som da
corneta, até que um dia – há sempre um dia – foi escolhido para pegar a bisarma
pelos cornos. Chegou a meio da praça, rodou lentamente os pés e de mão no ar
onde ostentava o barrete da farda, saudou o público que lhe batia palmas. Depois
citou de meia praça – tinha chegado o seu momento de glória. Lá ao fundo, a
rapar as patas no chão e a fumegar pelo
nariz, o touro negro e luzidio parecia estar entretido a olhar o público. Mas,
de repente, virou-se e encarou com o Lima. Mirou o forcado de cima a baixo,
entortou ligeiramente a cabeça, defecou para o chão e partiu como um torpedo,
levando atrás de si setecentos quilos de peso. A colisão foi frontal e demolidora,
e o pobre Lima foi pelo ar como uma folha de papel. Só acordou no hospital
escalabitano, todo partido, e onde esteve algum tempo. Foi então transferido
para os Hospitais da Universidade de Coimbra, junto às Escadas Monumentais naquele
tempo, onde durante vários meses os médicos e enfermeiros, pacientemente, lhe numeraram
os ossos e lhos colocaram no devido sítio, como num puzzle. O meu pai,
solidário, ia visitá-lo, mas não via nada. Apenas ligaduras e um rosto cheio de
escoriações e nódoas negras, que mais parecia um Cristo . Mas, com esforço, um
dia o Lima balbuciou:
- Agostinho, quando vi o bicho a crescer para mim, parecia
que estava a pegar a máquina a vapor do comboio da Beira Alta …
Recuperou e um dia passou fronteira. Foi para a Suiça onde,
durante muitos anos, ninguém soube nada dele. Até que, surpreendentemente, um
dia alguém veio e trouxe notícias. Bem aparentado e galã de palavra fácil, não
foi colhido mas colheu o coração de uma donzela que não era, nem mais nem menos,
que filha de um milionário possuidor de um conceituado império no ramo dos
chocolates de uma marca muito conhecida na época. Estava bem na vida encostado
ao sogro e, pelos vistos, o seu destino revelou-se doce pelo matrimónio. Hoje,
se for vivo, terá uma idade simpática. E eu, que na minha tenra idade ainda o
conheci das poucas vezes que visitou a minha casa do bairro, desejo que assim
seja.
Quito Pereira