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terça-feira, 1 de novembro de 2022

NOITE DE LUA CHEIA- DE TELMA LOPES


 Noites de lua cheia


Hoje permito-me a chorar

Hoje permito-me a estar triste

Hoje sinto que preciso ser cuidada

Preciso de um abraço, preciso de um colo, preciso de um beijo e de um "vem, que eu ajudo-te, eu estou aqui para ti"

Nem sempre estamos bem, nem sempre estamos fortes e com um sorriso na cara

Permite-te sentir, permite-te estar frágil

Esta fragilidade não te define, esta fragilidade apenas te faz lembrar que és uma pessoa forte e que consegue superar os momentos de tristeza

No agora estás triste, sim e então?

Este dia não vai durar para sempre, o sol vai-se pôr, a lua vai aparecer, tu vais descansar com a certeza que o amanhã vai ser mais belo.

Vive o momento, e se o momento é feito de tristeza, pois então aproveita tudo o que essa tristeza traz para ti.

São estes os momentos que te fazem crescer

É esta a consciência que tens que ter dentro de ti, a consciência que estás a crescer nos momentos de alegria, de contemplação, mas também nos momentos de tristeza.

Vive a tua vida, a tua verdade, aceita o que ela traz para ti, porque o que vem é aquilo que tu precisas.

Confia e diz todos os dias a ti própria "Eu amo-me, eu aceito quem eu sou"

Por isso hoje permite-te a chorar, deixa que essas lágrimas lavem a tua alma, sente tudo o que precisas de libertar... No fim ficarás mais leve, mais serena, com mais clareza na tua alma e no teu coração.

Telma Lopes


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

ENCONTRO COM A ARTE-PROSA - ACORDEI

 Acordei. Lá fora o vento sopra barulhento. Eu gosto dele. Gosto de olhar para as traquinices dele. Pena eu já não ter agilidade para ir lá para fora a brincar também. 

Ponho-me atrás da vidraça e vejo as suas tropelias. Agora arrancou um montão de folhas e leva-as pelo  alto, alto...depois descem e voltam a levantar... Lá mais ao fundo deixa-as cair aos trambolhões. Depois, sopra-as devagarinho para ficarem alinhadas junto ao muro branco do passeio, já atapetado com milhares delas: folhas de plátano, de tília, de álamo,  bolinhas e folhas de mélias... E o maroto vai e volta atrás a colher laranjas das laranjeiras da rua da frente. E meia dúzia delas não lhe resistem. Com o peso que têm não conseguem voar e caem estateladas  no chão. Ainda rebolam um bocadinho convencidas que conseguem correr. Mas não. Ou ficam paradas nas pedras do passeio para serem chutadas para o canteiro pelos transeuntes ou vão parar ao alcatrão ficando esmagadas debaixo das rodas negras dos automóveis. O vento, aflito ainda corre a tentar levá-las mais para a berma, mas nem sempre consegue.

    Como não posso continuar aqui vou lembrando aquele vento com quem brinquei em menina que me empurrava para eu correr mais depressa, ou vinha de frente para eu não ir para a escola. Zanguei-me com ele quando me levantava as saias dos vestidos e quase me fazia aparecer as cuequinhas. Mas adorava quando me soltava os cabelos e me roubava a boina. Nessa altura eu corria tanto ou mais do que ele e quando estava quase a apanhar aquela marota, ele dava nova sopradela e fugia com ela... A vida é tão linda vivida assim sem preocupação de o amanhã, do logo, do depois...

Um grande chi coração para si, que quis apanhar estas palavras soltas...

Georgina Ferro.


sexta-feira, 3 de setembro de 2021

APROVEITA O QUE NÃO PRESTA E TERÁS O QUE É PRECISO

 Aproveita o que não presta e terás o que te é preciso.

Nesta sociedade de consumo descartável, em que muito parece efémero e pouco é duradouro, fica-nos a sombra daquilo que alguma vez tivemos e hoje gostaríamos de voltar ou continuar a ter.  Usamos, dispensamos e botamos fora tudo o que já não serve, por defeito ou feitio. Falo de coisas, de ideias e de pessoas. 

Quando uma coisa é deixada de parte ou lançada fora, não é só ela que se vai: com ela seguem as ideias e vivências que evocaram e as pessoas que de alguma forma se relacionaram com elas. Um brinquedo que na altura nos parecia velho e sem uso, que acabamos por deitar ao lixo, levou consigo muito mais do que era. Não o vendo, já não lembramos aquele ou aquela que no-lo deu nem os amigos que à volta dele brincaram. 

Em contra corrente, temos agora em nós um museu da alma que nos traz a saudade do que já tivemos. Por isso, compreende-se que alguma coisa fique no tempo e permaneça perto, à vista da passagem repentina do olhar. Todos guardamos uma peça de loiça dos avós, um livro da juventude, um brinquedo da infância e tantas coisas mais. Achamos mesmo o máximo ver à venda o livro da nossa antiga 3ª classe, o treco-treco ou a trotineta de madeira que se comprava nas feiras. Só não pegamos e não damos uma volta airosa pela rua porque temos aquela  vergonha da adultice, de ar sisudo, que não acha piada a estas extravagâncias.

Recordo-me de uma  profissão que na minha infância já quase estava extinta, mas que ainda tive o privilégio de ver operar. Lembro-me vagamente do deita gatos que passava pela aldeia e, de uma vez só também compunha sombreiros de pano, compunha potes e amolava tesouras e navalhas. 

O deita-gatos e o compõe-potes tocavam profundamente nos corações das donas de casa que tinham tido a visita do infortúnio num prato ou travessa que se partira ou num pote que ficara tempo demais ao lume sem água e, por isso, se rompera. O amolador era mais eclético e salvava a figura do dono da casa, mas também da menina namoradeira que precisava do seu sombrinha para andar de enleio às voltas do adro ou da feira.

O deita gatos passava e, meticulosamente, praticava uma cirurgia plástica que, pragmaticamente, dava mais uns anos de vida ao prato ou à malga, ignorando que, muitos anos depois, o seu trabalho valorizaria tais objetos e que, por cada gato, haveria uma memória  a evocar. Ninguém pergunta ou sabe a idade do prato, mas, ao vermos os gatos, vemos logo que é coisa antiga e sobrevivente ao tempo. Mesmo que não seja antiga, é assim que a vemos. Se para a senhora da casa  foi um remedeio necessário,  para os herdeiros é uma preciosidade. É estranho? Claro que sim, mas é desta forma que as memórias se fazem.

Uma curiosidade linguística: a palavra “gatado”, significando algo errado, imperfeito ou corrigido, tem a ver com o exercício desta profissão e, na literatura, um dos poetas maiores do século XX não deixou passar ao lado a subtileza dos remendos no corpo e na alma. Deixo-vos com ele:

Ó rapaz que deita gatos

Deitas gatos só em pratos,

Só em tachos e tigelas,

Ou deitas gatos também

Nas almas e no que há nelas

Que as quebra em mal e em bem?

Ah, se, por qualquer magia,

As tuas artes subissem

Àquela melhor  mestria

De pôr gatos que se vissem

No que sonho e no que sou!

Então...Qual então! Que tratos

Dei a um poema que surgiu!

Só consertas, só pões gatos

No inteiro que se partiu.


O partido nasceu

Nem tu consertas nem eu.

Fernando Pessoa, 1933

Foto: Deita Gatos, 1910. Aguarela  sobre papel. Coleção Museu Almeida Moreira, Viseu. Exposta temporariamente no Museu Grão Vasco.

Por Prof Antonino Silva