quarta-feira, 21 de outubro de 2020

O VAGABUNDO DO MAR

 

O VAGABUNDO DO MAR …

Sagres é um Sacrário de religiosidade. E eu, um devoto da religião de Éolo, sempre que a oportunidade surge, lá vou em romagem a um dos meus recantos preferidos de Portugal. E hoje e mais uma vez, neste dia em que o sol apareceu tímido no horizonte, parti como romeiro na procura do mar batido pelo vento a desfazer-se contra as rochas em novelos de espuma, numa coreografia sob a batuta da esfinge do Infante que se materializa em cada onda, em cada fraga, em cada abismo, em cada santuário de pedra debruçado para o mar. Neste vazio espacial, o promontório está repleto de romeiros. Carros que se cruzam na estreita fita de estrada que me leva junto ao farol, sentinela vigilante do Atlântico. Naquela varanda de pedra pintada de branco, a oportunidade de olhar o mar. Um mar verde, profundo e agressivo em tempo de suestada, que daquele ponto se estende até onde a nossa vista alcança. Um pequeno barco chama - me a atenção. Traz dois mareantes e aproxima-se das rochas sulcando as ondas em esforço, até desaparecer do meu olhar naquele tormento de fragas que me rodeiam e que esmagam qualquer caminhante pela monumentalidade do cenário com que a natureza brindou este recanto luso. De repente, a surpresa que me reserva o António que me acompanha. Uma chamada de telemóvel para um amigo dele e a resposta veio de pronto. Do meio do oceano, o João disse estar a nove milhas da costa com o seu pequeno barco de borracha. Todos os domingos é assim, quando o mar de Sagres lhe permite. Religiosamente e pela madrugada, atrela o barco ao seu jipe e lá parte para mais uma aventura solitária no Atlântico, tendo como companhia várias canas de pesca. E o seu atrevimento de partir mar adentro em rota errante já lhe tem dado momentos de glória no pescado, que o João sabe da arte. E ali, naquele momento, disse já ter apanhado um peixe de quatro quilos, muito aquém de outros que já lhe morderam o anzol. E eu, olhando a bruma e aquele mar profundo, interrogava-me sobre aquele homem que pelo gosto supremo da pesca desportiva, enfrentava o perigo algures perdido onde o meu olhar ansioso não podia alcançar. E meditava nesta nossa saga de batalhadores do mar e da vida, e se ele - o João – seria um descendente do Infante pela bravura de partir desafiando as ondas e a resposta só podia ser concordante. Há mar e mar há ir e voltar. E eu, com o meu familiar e amigo despedimo-nos de Sagres, na certeza que o oceano generoso e condescendente deixará este vagabundo do mar regressar a terra firme, na demanda da sua cidade de Lagos e ao conforto da sua família e dos seus amigos.

Kito Pereira

Cidade de Lagos, 11 de Setembro de 2020              

6 comentários:

  1. A grande vantagem de ler os teus textos, Kito, é que sem sair do conforto da minha casa, também senti o vento a bater-me da cara e até vi o tamanho do peixe que o maluco apanhou! Sim, maluco, porque só um maluco é que se aventura a ir para o alto mar num barquito. Mas distraído a olhar para o mar, não viste uma miúda, que não tirava os olhos de ti! E olha que ela não era nada de deitar fora!... Para a outra vez, não olhes só para o mar, olha também para a terra, que em terra é que anda o peixe bom...

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    1. Amigo Alfredo, na minha estadia por lá relativamente longa, tive a oportunidade de ir 3 vezes a Sagres. É um lugar de Portugal de que gosto particularmente. E descobri lá um restaurante com ampla esplanada com belo peixe.

      Porque não era muito aconselhável andar por ajuntamentos por razões de pandemia, fui- me entretendo a rabiscar uns textos em casa. Agora, e porque o Fernando continua a desejar a minha colaboração, vou compartilhando com os amigos.
      Abraço

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    2. E compartilhas muito bem,apesar das maluqueiras do teu computador...
      Má lá vai dando com a tua boa vontade...
      Dizes que foste a Sagres...mas não deve ter sido por mar!
      Para esse alto mar só o teu amigo à procura de peixe graúdo e fazendo jus ao título do teu texto,vagabundo do mar!
      Ficas por terra e não muito pela praia para não dares banho aos pés!
      Mas dá para perceber o quanto gostas de Lagos...

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  2. Quito, agora és Kito?!
    Mas és o mesmo com os textos impecáveis...até porque...não pecas!

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    1. Mamãe, se leres os comentários deste post, o Q... o K... o Pereira explica. E é uma justificação muito bonita, vais ver.

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    2. Ahhh, entendi. Bela homenagem ao pai do Ki tô.

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