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terça-feira, 17 de dezembro de 2024

O SENHOR DA SERRA-TEXTO DE RUI FELÍCIO

O SENHOR DA SERRA


Na freguesia de Semide, concelho de Miranda do Corvo, há um antiquíssimo santuário que foi durante séculos destino de peregrinações de todo o País e até de Castela.

Só perdeu protagonismo depois de Fátima quando aqui Nossa Senhora apareceu aos pastorinhos e que na década de 20 monopolizou os crentes. 

Situa-se num penhasco que domina uma bela paisagem em direcção à Serra da Lousã e, nalguns dias, até à Estrela. 

Era tradição os crentes irem até ao Senhor da Serra durante a noite, acendendo fogueiras para afugentar os lobos e proteger os rebanhos que por ali pastavam até ao anoitecer.

Miranda do Corvo, que obteve foral em 1143 de D. Afonso Henriques, pertencia ao Condado de Coimbra e, como terra de fracos recursos, aproveitava as cabras velhas e já sem utilidade para as abater e comer.

Como eram animais de carne duríssima, tinham que temperá-la de um dia para o outro em grandes tachos de barro que no dia seguinte iam ao forno durante três ou quatro horas.

Os intestinos e miúdos da cabra eram também aproveitados atando-os com linhas em pequenas bolas a que chamaram negalhos.

Miranda do Corvo intitula-se a capital da chanfana contra igual pretensão da vizinha Poiares. 

Certa noite de Lua Cheia, um grupo de malta em dois carros decidiu ir ao Senhor da Serra, levando consigo a empregada de limpeza do Café do Silva que insistiu em que a levássemos connosco.

Chegados ao cimo do proeminente monte do santuário,  saímos, acendemos uma fogueira e espantámo-nos com o que disse a dita empregada:

       - Olha a Lua daqui é igualzinha à de Coimbra!!


Rui Felicio


 

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

ENCONTRO COM A ARTE- COIMBRA - TORRES DO MONDEGO CONTO DE RUI FELÍCIO- FOGO PRESO

FOGO PRESO

 

Não falhava!

 

Todos os anos em Agosto, lá ia eu pernoitar em casa do meu avô na véspera da procissão da Festa das Torres do Mondego. Despertava cedo, no dia seguinte, com o estralejar dos foguetes que ecoava do outro lado do Mondego, nas Carvalhosas, com a algazarra dos cães a ladrar e com o barulho infernal dos bombos dos Zés Pereiras, acompanhados pelos estridentes choros das gaitas de foles.

 Naquele ano, a festa ia ser de estalo. O juiz, António Fueiro e os restantes componentes da Irmandade era tudo gente de primeira escolha. Pela primeira vez ia haver fogo de artifício, vindo especialmente de Gondomar, que era longe como um milhão de diabos. E o melhor que se fazia em Portugal, garantia o pirotécnico!

 Raios parta o sacana do homem, dizia o regedor, referindo-se ao pirotécnico. Homem duma cana, corroborava o Toino Pataqueiro, enquanto levava à boca mais um tinto morangueiro e besuntava os dedos num naco de toucinho cru. Do fogo de artifício iria emergir no ar uma barca serrana toda engalanada, coisa nunca vista, nem nas Festas da Rainha Santa em Coimbra! Nem mesmo nas da Senhora da Agonia lá no Minho, acrescentava o vendedor do foguetório …

 No ano anterior, a festa tinha sido um fiasco. O Ti Zé Carne Assada, que foi o juiz desse ano, só se tinha preocupado em apresentar lucros com a quermesse e com a venda de bilhetes para o baile no recinto da Junta. Ainda por cima, entregou o dinheiro todo ao Padre João, para obras na igreja.

 Na taberna do Sr. Almeida, o António Fueiro não se cansava de espalhar a novidade. O coração quase lhe saltava do peito rude quando se imaginava na noite do arraial a ser aclamado pela aldeia.

 No rio, lá em baixo, o pirotécnico afadigava-se a montar o fogo preso, em duas barcas serranas ancoradas na correnteza, para o grande festival da noite da festa. Seria dali que os foguetes de lágrimas se desprenderiam, para espanto dos aldeões e dos forasteiros, varrendo com as suas luzes multicores o casario da povoação.

 E chegou a hora tão ansiosamente esperada. Toda a gente se acotovelava à beira da estrada de Penacova que atravessa a terra, no pátio da Junta e no adro da igreja. A um sinal do Fueiro, um impaciente cachopo, limpou o ranho à manga da camisa e desatou descalço, em louca correria pela quelha que vai dar ao rio, para avisar o homem dos foguetes que podia começar.

 Uma salva de três morteiros assinalou o início. A seguir, a populaça o que viu, foi o Mondego, lá em baixo, iluminar-se de várias cores e uma densa nuvem de fumo elevar-se lentamente em direcção à aldeia.

 O impacto dos três primeiros foguetes tinha aberto um buraco no chão meio apodrecido de uma das barcas que se foi afundando lentamente com todo o arsenal pirotécnico a bordo. Os foguetes disparavam para a esquerda, para a direita, mas não para o ar, como bichas de rabiar, incendiando  o fogo preso que estava na outra barca.

 Porém, o homem de Gondomar tinha parcialmente razão! Como prometido, uma das barcas serranas boiava nas águas toda engalanada pelas labaredas e por uma estrepitosa e colorida miríade de chispas. Só lhe faltou subir aos ares... 

 Rui Felício

Viveu infância  em Coimbra no Bairro Norton de Matos e licenciou-se na UC em Direito.

 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

INESPERADO DESENLACE TEXTO DE RUI FELICIO

INESPERADO DESENLACE

A velhota D. Guilhermina já estava com 93 anos. Nos últimos cinco tinha sido internada por 4 vezes, sempre com AVC’s, cada um deles mais profundo e grave que o anterior. O bombeiro que a veio buscar a casa, alta madrugada, para a transportar para o hospital, perante o ar inerte e frio da velha, sentenciou, com ar entendido, que desta ela não escapava.

Olhou fixamente o genro e disse:

Olhe, Sr. Alcides, para mim é como se já estivesse morta. Transportá-la para o hospital é uma simples formalidade. Uma obrigação legal...

O genro ouviu isto, afivelou um ar pesaroso, mas, bem lá no íntimo, deu graças a Deus por finalmente se ver livre daquela velha chata e por ir tomar posse dos bens que ela ia deixar à filha única, sua mulher.

De manhã muito cedo, informou o patrão que estava de luto e que, por isso, não iria trabalhar nos próximos 5 dias, telefonou à agência funerária para irem fazendo os preparativos para o funeral, ligou às pessoas mais chegadas a dar conta do triste e doloroso desenlace, acarinhou a sua mulher que estava inconsolável a chorar deitada na cama, acordou o padre para o avisar e foi à barbearia do Sr. Elias. Com lágrimas nos olhos, foi carpindo a mágoa de tão funesto acontecimento, enquanto o barbeiro lhe fazia a barba.

O Sr. Elias, como se imagina, encarregou-se de espalhar a notícia. Em poucos minutos toda a aldeia e arredores, sabiam da morte súbita da D. Guilhermina.

De barba feita, fato preto e óculos escuros, o Alcides Ferreira apanhou a carreira das 11 horas para a cidade, foi a uma loja da Baixa comprar uma gravata preta que atou ao pescoço e subiu até ao Hospital.

Estranhou que a empregada da recepção, quando questionada por ele sobre o paradeiro da D. Guilhermina, e se ela lhe podia dizer o nome do médico que a observou, aquela lhe respondeu secamente, enquanto batia continuamente nas teclas do computador sem dali desviar os olhos:

- Quarto 34, Medicina Geral, 3º andar. O médico que a acompanha é o Dr. Tomás de Sousa

As ideias atropelavam-se na sua cabeça. Não estava a entender nada. Afinal o bombeiro tinha-lhe garantido que a velha não tinha salvação possível e agora dizem-lhe que está num quarto do hospital? Os defuntos não são levados para os quartos...

Depois de palmilhar os corredores do hospital, lá encontrou o Dr. Tomás de Sousa que, com um sorriso e uma palmada nas costas, lhe disse que ele era um homem de sorte, que tinham conseguido salvar a D. Guilhermina. Mais uns minutos e já não teria sido possível fazer nada.

No dia seguinte, o Diário de Coimbra noticiava na primeira página:

O distinto médico dos HUC, Dr. Tomás de Sousa, encontra-se internado com o maxilar inferior partido e duas costelas fracturadas, depois de ontem ao meio-dia ter sido selvaticamente agredido em pleno hospital por um aldeão de nome Alcides Ferreira.

   Rui Felício

 

domingo, 9 de julho de 2023

VOLFRAMISTAS CRÓNICA DE RUI FELÍCIO

VOLFRAMISTAS


Durante a Segunda Guerra Mundial, entre as necessidades dos nazis para alimentarem a sua máquina de guerra, ocupava lugar de destaque a do volfrâmio para endurecimento das ligas metálicas das armas.

 O Estado Novo, disfarçando a sua apregoada neutralidade,  à socapa ou por caminhos ínvios, vendia aos alemães a produção das minas da Panasqueira que chegaram a empregar 10 mil mineiros ao serviço da Beral Tin & Wolfram Limited que tinha a concessão estatal.

Contava-me o meu pai, que trabalhara para essa empresa no começo da sua vida profissional, como contabilista, em Sarzedas, anos antes de eu nascer,  que muita gente nessa altura enriqueceu.  Não propriamente os mineiros, que esses iam subsistindo com salários miseráveis, mas sim os candongueiros que surripiavam minério escapado ao controle da mina e às barragens nas estradas circundantes feitas pela polícia.

Que depois vendiam no mercado negro...Esses novos-ricos, por norma gente de origens modestas e rudes, sem princípios e sem educação, faziam questão de ostentarem a súbita riqueza, aperaltando-se com roupagens de alto preço que adquiriam na Baixa de Coimbra, para com elas alardearem posses e  suplantarem o estatuto social que tanto odiavam e invejavam do professor, do médico, do advogado, do lavrador, do oficial do exército ou até mesmo do padre.

Embrulhavam-se em camisas de seda italiana, fatos muito “british” com etiqueta do Pais de Gales, sapatos de pele com polainitos, made in United Kingdom, gabardines com grandes lapelas imitando os SS alemães.Hospedavam-se invariavelmente no Hotel Astória onde se enfrascavam com “champagne bouergois”. Exigiam aos criados do Hotel que lhes trouxessem lagostas de Cabo Verde ou cervejas holandesas, berravam-lhes e exibiam-lhes molhos de notas com que pagariam as iguarias de que o hotel não dispunha. 

Usavam bigode à Clark Gable, chapéu de coco à Winston Churchill e bengala encastoada a prata, exibindo-se, prazenteiros, entre a classe universitária que, com não menor pedantismo, vagueava pela Ferreira Borges e pela Visconde da Luz.

Consta que o dono da casa comercial onde entrassem, tinha que aumentar o preço dos artigos,  se lhos quisesse vender. Argumentar que vendia barato significava a imediata saída do volframista à procura de quem lhe vendesse mais caro. Para poderem dizer aos amigos, a fortuna que lhes tinha custado esta ou aquela peça.

Como bons profissionais, os comerciantes da cidade rápido aprenderam as manias dos volframistas e começaram a mandar vir etiquetas estrangeiras para substituírem as de origem. Nas camisas de popeline feitas em São Mamede de Infesta, colavam etiquetas de Milão, os fatos da Covilhã passaram a ter etiqueta made in UK, no espumante de Sangalhos colavam rótulos de Bordéus, os sapatos e os chapéus de São João da Madeira ganhavam etiquetas de Cambridge e a prata das bengalas passou a ser substituída por latão dourado.  

 Era dinheiro fácil, urgia gastá-lo! Ainda os há agora, com outros nomes... 

Rui Felício


-----reeditado------


 

sábado, 20 de maio de 2023

ENCONTRO COM A ARTE-CONTO UM DIA NO RIO DO RUI FELÍCIO

UM DIA NO RIO

Ninguém se lembrava de tanto calor como o daquela semana de Agosto de 1953. No Bairro, as persianas de madeira estavam todas fechadas. Só as abriam de noite para deixar correr uma aragem que refrescasse as casas.

Mesmo assim, o ar nocturno era quente, abafado…

No quintal do clube do Bairro, naquela noite passava um filme da II Guerra Mundial. 

Talvez influenciadas pelas atrocidades da guerra, as mulheres mais piedosas, abraçavam as suas crianças que também viam o filme, concluindo em voz sussurrada que este calor infernal era um castigo de Deus para os horríveis pecados que a humanidade cometia.

Um rancho de casais já tinha combinado ir na manhã seguinte passar o dia ao rio para fugir à canícula. Cestos de verga a abarrotar de croquetes, bolos de bacalhau, pataniscas, pão, torresmos, tachos, fogareiros a petróleo, talheres, toalhas de mesa, garrafas de vinho, bilhas de barro com água e gasosa para os miúdos já estavam preparados De manhã seria só pegar e arrancar…

A criançada fez o percurso em alegre galhofada e os pais ajoujados ao peso da traquitana que levavam , subiram o Alto de São João e iniciaram a descida para a Portela.

Descarregaram a tralha junto a um dos pilares da ponte, aproveitando a sombra do mesmo e as mulheres começaram logo a preparar o necessário para mas tarde assarem as sardinhas compradas de véspera às peixeiras da Figueira que vinham ao Bairro vendê-las.

“ Sardinha da areia! Três dez tostões…”, apregoavam…

Os homens, de fato de banho, deitados na água rasa, nadavam, chapinhavam, riam…

Os miúdos completamente nus corriam na areia, brincavam ao agarra, e em louca algaraviada atiravam-se para a água. Todos sabiam nadar. Tinham aprendido na piscina do estádio…

- Vamos brincar ao submarino? perguntou um dos rapazes ao grupo que o rodeava.

- Vamos! Gritaram todos…

O primeiro deitou-se de costas na água. Os braços estendidos ao longo do corpo, só com os pés a bater foi deslizando em direcção à margem.

Um por um, os outros foram fazendo o mesmo e depois repetiram da margem para o areal com risos e palmas dos que já tinham regressado. 

A irmãzita de um dos rapazes, chegou-se a ele e perguntou-lhe:

- Mano, as meninas não podem brincar a esse jogo?

O rapaz, empertigou-se como um oficial alemão e foi peremptório:

- Não, vocês não podem!

- Mas as meninas também querem… insistiu  a miúda, a fazer beicinho.

- Não, já disse !

- Porquê ?

- Ora…vocês não têm periscópio…

Rui Felicio

 

terça-feira, 18 de abril de 2023

ENCONTRO COM A ARTE-CONTO e FOTO DE RUI FELÍCIO

A FOME…

- Ela nunca mais chega das compras! Estou cheio de fome!

- Que exagero! Andas sempre cheio de fome. Não há comida que te vede…

- Ora. E o pai? Está sempre aí sentado no sofá a dormir. Só se levanta para comer…

- Mas eu estou velho e cansado. Mal de mim, se andasse sempre como tu a saltar, a pular, a correr, a derrubar os objectos que estão em cima das mesas… Nem sei como é que ela te atura. Se não fosse por sua causa, eu já te tinha posto na ordem…

- Mas eu só brinco. Não faço mal a ninguém. Ela, a si, às vezes, até lhe serve a comida num tabuleiro para não ter que se levantar daí do sofá.

- Já te disse! Porque já não tenho a tua idade. Estou velho!

De repente ouvem o barulho da chave na fechadura.

- Disfarça! Disse o velho. Para ela não perceber o que estamos para aqui a dizer.

- Sim,sim, disfarcemos, aquiesceu o miúdo.

Ela entrou, de sacos de compras na mão, dirigiu-lhes um cumprimento e foi até à cozinha para lhes ir dar a comida.

Correram atrás dela, roçando-se nas suas pernas, ronronando, enquanto lhe diziam repetidamente:

- Miau! Miau!

Rui Felicio


 

quinta-feira, 16 de março de 2023

TRAGÉDIA EM COIMBRA 1938 POR RUI FELÍCI

TRAGÉDIA EM COIMBRA
Dia gelado de inverno. A água que escorria de patamar em patamar na velha fonte do Jardim da Sereia, tinha solidificado em pontiagudos fusos que lhe davam uma inusitada e fantasmagórica aparência.
Desde o Liceu D. João III, ao longo da mata do jardim, eu e mais uma dúzia de miúdos fomos recolhendo pequenos paus secos com a ideia de fazermos na Praça da República uma fogueira para nos aquecermos. E, principalmente, para nos divertirmos...
Chegados à Praça empilhámos os paus recolhidos e preparámo-nos para acender o monte de lenha.
Chegou-se ao pé de nós um homem de certa idade e aconselhou-nos a não o fazermos. Um de nós ainda lhe disse, com a esperteza saloia dos 15 anos de idade, que ele não era polícia para nos tentar proibir.
- Não é nada disso! – retorquiu o homem!
- Se me ouvirem, perceberão porque é que vos peço para não acenderem o lume!
............................
E contou-nos o que mais de vinte anos antes se tinha passado naquele mesmo local onde nos aprestávamos para fazer a fogueira:
O programa das Festas da Rainha Santa de 1938 integrava um simulacro de incêndio. Para o efeito foi construído no meio da Praça da República um “prédio” de 7 andares em madeira. Distribuídos pelos andares do “prédio”, colocaram 13 figurantes.
Pelas 21,30 horas do dia aprazado, a base do edifício foi regada abundantemente com gasolina, a que, acto continuo, alguém chegou o fogo. O “alarme” foi dado para que os bombeiros acorressem ao local e extinguissem o incêndio. Tal como previsto...
Sucedeu, porém, que as chamas irromperam com uma enorme velocidade e violência, mais do que os promotores do espectáculo tinham calculado.
O edifício foi devorado pelas chamas em poucos minutos. Quando os bombeiros chegaram já alguns dos figurantes tinham morrido carbonizados, enquanto outros se começaram a lançar, com o corpo em chamas, estatelando-se no chão da praça.
Os bombeiros ainda estenderam uma lona na tentativa de atenuarem a queda dos últimos que se atiraram, mas o dispositivo não era suficientemente forte e os corpos que nela embateram acabaram por sucumbir.
Dos 13 figurantes só houve um sobrevivente!
...........................
Um dos mortos era meu irmão – finalizou o homem...
Rui Felicio

 

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

E DA NOITE SE FEZ DIA-TEXTO DE. Por RUI FELÍCIO

 


E DA NOITE SE FEZ DIA...


Passadas décadas, ainda hoje tenho vivas as emoções daquela noite.

Deitado no chão em cima de um colchão usado, num quarto ainda sem móveis, mirava cada detalhe da nova casa, com a ajuda da luz crua de um luar de verão, que se derramava através da janela aberta...

A insónia e o coração apertado pela novidade mantinham-me acordado.. Só alta madrugada o sono me venceu.

A mudança do mobiliário ainda não tinha sido feita completamente, mas nem por isso os meus pais quiseram esperar para inaugurar a casa.

Tinha acabado de fazer a primeira classe na escola da Rua dos Combatentes, pela mão sábia e amiga da Professora D. Olímpia.

Tinha vivido durante pouco mais de um ano, ali perto, na Casa Branca, em casa alugada, enquanto esperávamos pela atribuição da casa nova.

Foi a minha primeira noite no Bairro. Estava eufórico por ter umas escadas interiores para subir e descer num vai vem frenético de criança. E que lindos eram os arbustos que delimitavam o jardim e o quintal! Parecia-me tão grande, esse quintal!

Na manhã seguinte iria encontrar-me com alguns colegas da escola que também tinham ido viver para o Bairro. Já congeminava as brincadeiras que com eles ia partilhar, ansioso pelo nascimento do sol para os procurar...

As ruas do bairro, que hoje me parecem estreitas, achava-as eu, naquela altura, verdadeiras avenidas, especialmente as ruas A e F!

E como me pareciam grandes as praças com árvores e relva, que aliviavam o conglomerado de casas, abrindo-se inesperadamente a quem percorria o reticulado das ruas...

Os arbustos que tanto me encantavam, foram sendo, com o passar dos anos, em grande parte substituídos por muros de cimento, as bonitas, mas pouco resistentes persianas de madeira, por estores de alumínio, os quintais foram sendo ocupados com anexos ou com garagens e as ruas então quase desertas, estão hoje invadidas por dezenas de carros encostados aos passeios.

O progresso tem os seus custos...

Praticamente não tinha tido amigos antes de vir para Coimbra. Vivi os meus primeiros anos num andar em Lisboa, de que raramente saía, a não ser para ir ao domingo com o meu pai, ao Café das Pretas na Feira Popular, ou andar nos barcos do lago do Campo Grande, ou ir ver os aviões no aeroporto.

Coimbra e o Bairro foram a minha libertação, o encontro com dezenas de miúdos da minha idade, a aprendizagem de brincadeiras que nunca antes tinha experimentado.

Aquela inesquecível noite foi o prelúdio de uma infância feliz e, mais tarde, de uma adolescência que já tinha cimentado as amizades e que começou a descobrir os horizontes do amor.

Com o Bairro sempre como cenário.

A escuridão daquela noite foi sendo substituída pela luz intensa do dia...

Que me foi revelando as coisas boas da vida. E as menos boas também...

Ai se aquelas ruas falassem...


Rui Felício


domingo, 19 de abril de 2020

ATELIER

O Pedro, finalista do curso de desenho e pintura das Belas Artes, foi incumbido pelo professor de pintar um nu feminino, segundo os moldes clássicos.

Preparou a tela, montou-a no cavalete, reuniu as tintas e os pincéis e colocou estrategicamente todo o material num recanto das águas-furtadas que tinha arrendado no Bairro Alto quando veio estudar para Lisboa.

Arrastou um velho sofá para debaixo da janela aberta no telhado, lugar onde incidiam os raios solares, que a poeira em suspensão ajudava a desenhar, como setas apontadas ao velho cadeirão.

Cobriu o sofá com um grande pano de cetim vermelho que a Escola lhe facultou.

Agora, só faltava encontrar o modelo que se dispusesse a posar durante uma ou duas semanas, naquele quarto andar esconso onde morava o Pedro.

Tentou a colaboração de uma das suas únicas três colegas de curso. Mas uma estava grávida e declinou o convite. Outra, tinha acabado de casar e o marido não iria concordar. A terceira não podia porque era mãe solteira e todo o tempo era pouco para assistir às aulas e tratar da filha.

Um colega sugeriu-lhe que tentasse encontrar no coalguém rpo de baile de alguma das duas revistas em cena no Parque Mayer.
No fim do espectáculo a que assistiu nessa noite, pediu para falar, no camarim, com uma das bailarinas que tinha observado todo o tempo, dizendo-lhe que era aluno das Belas Artes e que era por isso que precisava de falar com ela.
Fazia-o em nome da conhecida solidariedade entre artistas.

Ela acedeu a ouvi-lo. Alta, corpo escultural, longos cabelos negros, olhos negros profundos, lábios grossos sensuais, pernas longas, o peito bem desenhado que o pequeno soutien mal cobria.

Durante quinze dias, diariamente, a bailarina subia às aguas-furtadas do Pedro, desnudava-se, deitava-se no sofá, o braço direito flectido, a mão apoiando o queixo, os cabelos negros espalhados pelo ombro e cobrindo parcialmente o seio esquerdo.

As coxas fartas abandonadas sobre o cetim vermelho deixavam entrever a mancha escura que lhe rodeava o sexo.

Concluída a obra, dados os retoques finais, o Pedro apresentou o trabalho na escola.
Tecnicamente estava perfeito, elogiou o professor.
E artisticamente era uma inesperada originalidade!

O professor pediu-lhe que cedesse a pintura à escola, para servir de exemplo aos futuros alunos.

Ainda hoje lá está exposta. A vistosa bailarina era um travesti…

Rui Felício
JUL2010
Nota: O episódio veio-me à lembrança quando há dias o Quito aqui aflorou o tema do Teatro de Revista, a que está indissociavelmente ligado o Parque Mayer.

sábado, 23 de novembro de 2019

TIMIDEZ


Na Faculdade de Letras, o Chico era alcunhado pelos colegas de “bicho do mato”.
Educado, bem parecido, mas de uma atroz timidez, nas raras festas a que acedia comparecer, apenas por falta de pretexto para declinar o convite , refugiava-se num canto, de olhos baixos, pendurado num copo de whisky, tentando passar despercebido.
No meio da algaraviada dos dichotes e das estridentes gargalhadas dos colegas, das batidas rítmicas do “disco sound”, do tilintar dos copos, rezava intimamente para que não reparassem nele nem lhe dirigissem a palavra, contando os minutos para regressar a casa e encafuar-se na protectora solidão do seu quarto.
Andava loucamente apaixonado pela Carla, sua colega de turma, ao lado de quem se sentava durante as aulas, disfarçadamente, numa dissimulada casualidade. Inebriava-o a proximidade do seu corpo, do seu calor! Pelo canto do olho, admirava-lhe as curvas, a pele sedosa, os lábios carnudos, os longos cabelos negros. Um profundo arrepio percorria-lhe o corpo sempre que o braço roçava no dela. Mas era incapaz de lho confessar...
Aspirava, sôfrego, o cheiro perfumado que dela emanava, suspirava baixinho, mas desviava o olhar quando ela o fitava. Ciosamente, guardava o seu segredo, ocultava o intenso desejo de a abraçar, de a tocar. Fingia concentrar-se nos livros que tinha à frente, para esconder a sua perturbação. Chegava a ser carrancudo e ríspido com ela, para não denunciar o que sentia!
Por mero acaso, um dia descobriu na agenda que ela, casualmente, deixara aberta em cima da carteira, o endereço do “Messenger” da Carla.
Chegou a casa, ligou o computador, criou o seu próprio endereço, registou-se no “Messenger”, inventou um “nickname” e mandou-lhe uma mensagem pedindo-lhe que o aceitasse como amigo.
Desde então, todas as noites trocavam mensagens no “chat”, onde, sob o pseudónimo de Solitário, o tímido Chico se transformava num ser desinibido, viril, atiradiço até!


Falava-lhe nos íntimos desejos que ela lhe fazia experimentar e alvoroçava-se quando percebia que as palavras que digitava produziam na Carla, reciprocidade e igual reacção.


Numa dessas noites, descaiu-se e escreveu que as carícias e os beijos que ambos trocavam num descontrolado devaneio virtual, lhe faziam lembrar o aroma do perfume “Loewe” que ela usava, como se o estivesse a sentir no ambiente tépido do seu quarto, naquele mesmo momento.
No monitor do computador apareceu a inesperada e surpreendida pergunta da Carla:

- Como sabes? Que estranho! Não nos conhecemos pessoalmente e nem eu te disse nunca que uso “Loewe”!

O “Solitário” nunca mais a procurou no "Messenger"...




Rui Felício
27-12-2010

quinta-feira, 3 de outubro de 2019

QUOTIDIANO DO CAFÉ DO SR SILVA


QUOTIDIANO DO CAFÉ DO SR. SILVA

Ao fundo, o balcão envidraçado pejado de bolos de arroz, jesuítas, duchaises, pasteis de nata e de Tentúgal, brioches, queques…
Em cima dele num dos cantos, um pequeno barril de madeira que escondia a serpentina por onde corria a cerveja e que o Sr Silva, dono do Café, de manhã e à tarde aconchegava com
bocados poliédricos que ia partindo com um martelo de uma enorme barra de gelo.
Na parede, destacado, um diploma de Tirador de Cerveja em nome do dono do Café.
Numa mesa, ao canto, o Afonso, o Silva, hóspede, que vivia num quarto alugado no primeiro andar, o Elói e o Munhoz, jogavam os dados.
Ao lado, noutra mesa, o prof Ilharco, de lunetas redondas encavalitadas na ponta do nariz, impacientava-se e intimava o Sr Silva a ultimar o trabalho de meter o gelo no barril para se vir sentar para uma partida de damas.
No meio do ruído dos dados a rebolarem estrepitosamente no tampo da mesa ao lado, o Afonso ia apontando num papel, os tentos de cada parceiro, sempre sob o olhar desconfiado do Munhoz que não se cansava de dizer que ele queria ganhar na secretaria.
O Sr Silva, de cabelo preto arrepiado da frente para trás, entretanto já sentado em frente ao prof. Ilharco lá ia movimentando as pedras, carregando fortemente naquela que acabara de deslocar.

Fitava o Ilharco e setenciava com ar melifluo:
- Voi lhe colocar aqui um prego!
- Ah! Você disse um prego, articulava o Ilharco pensativo, fazendo uma careta...
Na mesa ao lado, o Elói, pausadamente, proclamava:
- Poker de ases!
E o Sr Silva, sem despregar os olhos do tabuleiro das damas:
- Ele disse poker de ases...
E o Ilharco:
- Ah, você disse  que ele disse poker de ases. Mas se não se põe a pau, como-lhe três e faço dama.
- E eu como-lhe a dama! Aqui não há pão para malucos...
- Ah. Você disse malucos...
- E o Munhoz na mesa do canto, ao mesmo tempo que chocalhava os dados dentro do copo de cabedal, antes de os lançar:
- Ah, ele disse que lhe comia a dama! Olha, fullen de reis por valetes. De mão! Aponta aí, Afonso!

Entra o Feliciano, de livros debaixo do braço:
- Sr Silva, queria um café e um bolo.
- Tire-o. Sirva-se! O café são oito tostões e o bolo doze, respondia-lhe o Sr Silva sem tirar os olhos do jogo das damas e estendendo a mão para receber o dinheiro.
- Vou-lhe fazer o pé de galo, dizia o Ilharco quando ficou com três damas contra uma.
E o Munhoz:
- Ele disse que lhe vai fazer o pé de galo!
Entre dentes, o Silva resmungava:
- Para isso tem de me tirar do rego.
- Ah, você não sai do rego...assim também eu, dizia o Ilharco, contrariado.
- Está de esquina! Não vale!, dizia o Afonso ao Elói que reclamava uma sequência máxima.
- Pois, é como digo. O gajo ganha sempre na secretaria, berrava o Munhoz com um murro na mesa que fez o dado esquinado assentar numa das faces.
- De esquina? Qual esquina?, respondia-lhe o Elói  apontando para os dados, agora sem nenhum de esquina, depois do murro do Munhoz...

Era assim o dia a dia no Café do Sr. Silva...







sábado, 30 de março de 2019

A MONARQUIA EM COIMBRA


 A MONARQUIA EM COIMBRA
 Na Travessa do Ponto e Virgula, empoleirada no píncaro do morro que a natureza plantou entre a Rua Visconde da Luz e a Rua Ferreira Borges, estava a casa apalaçada de mais de vinte divisões onde vivia o Barão do Calhabé, numas exíguas águas furtadas, dono e senhor de extensas herdades entre o Tovim e os Arcos do Jardim. Falecido há mais de dez anos, vivia o Barão, desde então, num completo desassossego porque o seu titulo nobiliárquico e os bens inerentes, só podiam ser transmitidos à filha mais velha que ainda estava por nascer e só depois do seu casamento. A sua irmã mais nova, já casada, a tais pergaminhos não tinha direito por herança, por decreto real do Rei de Portugal que havia de nascer 50 anos depois. Das profundezas da sua tumba, no cemitério da Conchada, mandou proclamar éditos para que se apresentassem candidatos à mão da tal filha mais velha. Apareceu um jovem, falecido há dezenas de anos, apresentando os seus atributos. Era um esqueleto bem conservado, onde balançavam três braços musculosos. Por falta de concorrência, o Barão aceitou de imediato a sua candidatura à mão da filha mais velha que havia de nascer. Ela gostou logo dele, por ter um braço a menos que os quatro das pessoas normais, facto que a libertaria de trabalho quando tivesse que lhe passar as camisas a ferro. Ao invés, o pretendente não vivo, começou a desfazer nela por ser uma mulher já demasiado idosa e ainda não nascida. O casamento não se consumou, a filha mais velha do Barão ainda demorou mais cem anos a nascer e morreu de nova, sempre divorciada, duzentos anos depois. O Barão exigiu ser exumado e mandou que lhe fosse feito um funeral com pompa e circunstância logo que voltasse a nascer. O titulo nobiliárquico caducou, os bens inerentes foram confiscados a favor do bairro da Solum e a designação Calhabé foi substituída por S. José. 
Rui Felício
NB:Não, não estou louco.Vou a caminho

sexta-feira, 6 de julho de 2018

NA AULA DE FILOSOFIA -Reposição de 2010

Há sessenta anos eu sabia tudo. Hoje só sei que sou ignorante.
A aprendizagem é a descoberta progressiva da nossa ignorância.
Foi com estas palavras que o Boaventura Sousa Santos, nosso professor de filosofia, iniciou a aula no Colégio D. João de Castro.
Entreolhámo-nos, com um meio sorriso. Eu, o Chico Duarte, do Bairro, e o Faria, que morava ao pé do Custódio Moreirinhas na Ladeira das Alpenduradas.
O professor, prosseguiu:E vocês, desconhecedores da vossa ignorância, ainda estão numa fase da vida em que acham que sabem muito.
Porque até hoje, ainda não aprenderam quase nada da vossa ignorância.
Ali, o Faria, por exemplo é, de todos nós, o mais sábio porque não estuda, não trabalha, não se dedica a aprender. É por isso que eu lhe dei negativa no período passado.
Ao Felício dei a melhor nota da turma no último exercício. Porque é trabalhador, vê-se que estudou, que se interessou pela matéria dada.
Quer dizer, o Felício já aprendeu mais do que o Faria, e por isso já tem maior consciência da sua ignorância.
Olhou fixamente para mim e disse-me:- Portanto, não estejas já todo contente com a nota que te dei, porque eu premeio é o trabalho, não é a sabedoria!
- Na realidade, a boa nota que te dei só significa que já és mais ignorante que o Faria
.E desviando o olhar para o Faria:
- E tu, enquanto continuares a ser sábio, já sabes. Levas negativa...


NOTA: O Boaventura Sousa Santos de que falo não é, claro, aquele que actualmente é professor na Universidade de Coimbra. Não sei se este é filho daquele, mas é provável que exista algum laço familiar entre os dois.

Rui Felício

Publicado em 18-10-2010

quarta-feira, 29 de março de 2017

AULA DE FILOSOFIA - Reposição-Texto de Rui Felício

Há sessenta anos eu sabia tudo. Hoje só sei que sou ignorante.
A aprendizagem é a descoberta progressiva da nossa ignorância.
Foi com estas palavras que o Boaventura Sousa Santos, nosso professor de filosofia, iniciou a aula no Colégio D. João de Castro.
Entreolhámo-nos, com um meio sorriso. Eu, o Chico Duarte, do Bairro, e o Faria, que morava ao pé do Custódio Moreirinhas na Ladeira das Alpenduradas.
O professor, prosseguiu:E vocês, desconhecedores da vossa ignorância, ainda estão numa fase da vida em que acham que sabem muito.
Porque até hoje, ainda não aprenderam quase nada da vossa ignorância.
Ali, o Faria, por exemplo é, de todos nós, o mais sábio porque não estuda, não trabalha, não se dedica a aprender. É por isso que eu lhe dei negativa no período passado.
Ao Felício dei a melhor nota da turma no último exercício. Porque é trabalhador, vê-se que estudou, que se interessou pela matéria dada.
Quer dizer, o Felício já aprendeu mais do que o Faria, e por isso já tem maior consciência da sua ignorância.
Olhou fixamente para mim e disse-me:- Portanto, não estejas já todo contente com a nota que te dei, porque eu premeio é o trabalho, não é a sabedoria!
- Na realidade, a boa nota que te dei só significa que já és mais ignorante que o Faria
.E desviando o olhar para o Faria:
- E tu, enquanto continuares a ser sábio, já sabes. Levas negativa...


NOTA: O Boaventura Sousa Santos de que falo não é, claro, aquele que actualmente é professor na Universidade de Coimbra. Não sei se este é filho daquele, mas é provável que exista algum laço familiar entre os dois.

Rui Felício
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