domingo, 19 de abril de 2020

ATELIER

O Pedro, finalista do curso de desenho e pintura das Belas Artes, foi incumbido pelo professor de pintar um nu feminino, segundo os moldes clássicos.

Preparou a tela, montou-a no cavalete, reuniu as tintas e os pincéis e colocou estrategicamente todo o material num recanto das águas-furtadas que tinha arrendado no Bairro Alto quando veio estudar para Lisboa.

Arrastou um velho sofá para debaixo da janela aberta no telhado, lugar onde incidiam os raios solares, que a poeira em suspensão ajudava a desenhar, como setas apontadas ao velho cadeirão.

Cobriu o sofá com um grande pano de cetim vermelho que a Escola lhe facultou.

Agora, só faltava encontrar o modelo que se dispusesse a posar durante uma ou duas semanas, naquele quarto andar esconso onde morava o Pedro.

Tentou a colaboração de uma das suas únicas três colegas de curso. Mas uma estava grávida e declinou o convite. Outra, tinha acabado de casar e o marido não iria concordar. A terceira não podia porque era mãe solteira e todo o tempo era pouco para assistir às aulas e tratar da filha.

Um colega sugeriu-lhe que tentasse encontrar no coalguém rpo de baile de alguma das duas revistas em cena no Parque Mayer.
No fim do espectáculo a que assistiu nessa noite, pediu para falar, no camarim, com uma das bailarinas que tinha observado todo o tempo, dizendo-lhe que era aluno das Belas Artes e que era por isso que precisava de falar com ela.
Fazia-o em nome da conhecida solidariedade entre artistas.

Ela acedeu a ouvi-lo. Alta, corpo escultural, longos cabelos negros, olhos negros profundos, lábios grossos sensuais, pernas longas, o peito bem desenhado que o pequeno soutien mal cobria.

Durante quinze dias, diariamente, a bailarina subia às aguas-furtadas do Pedro, desnudava-se, deitava-se no sofá, o braço direito flectido, a mão apoiando o queixo, os cabelos negros espalhados pelo ombro e cobrindo parcialmente o seio esquerdo.

As coxas fartas abandonadas sobre o cetim vermelho deixavam entrever a mancha escura que lhe rodeava o sexo.

Concluída a obra, dados os retoques finais, o Pedro apresentou o trabalho na escola.
Tecnicamente estava perfeito, elogiou o professor.
E artisticamente era uma inesperada originalidade!

O professor pediu-lhe que cedesse a pintura à escola, para servir de exemplo aos futuros alunos.

Ainda hoje lá está exposta. A vistosa bailarina era um travesti…

Rui Felício
JUL2010
Nota: O episódio veio-me à lembrança quando há dias o Quito aqui aflorou o tema do Teatro de Revista, a que está indissociavelmente ligado o Parque Mayer.

4 comentários:

  1. Já lá vão 1O anos! São muitas letras, muitas palavras, muita inspiração. Um traço vincado de escrita. A genialidade dos finais surpreendentes. É ele mesmo - o Rui Felício !!!

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  2. Obrigado Quito.
    Não esqueçamos porém que mais importante que quem escreve é quem inspira o escriba.
    E como eu disse em anotação de rodapé, foste tu o meu inspirador.
    E já lá vão dez anos passados num rápido lampejo...

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    1. Modéstia a tua, Rui ! Habituei-me a ler ao longo dos anos textos teus que são absolutamente notáveis. Que nunca a pena com que escreves te doa e eu cá estou como teu fiel leitor.

      Um abraço

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  3. Um texto escrito há 10 anos, cujo interesse se mantém, dado que é um prazer ler Rui Felício.
    Um abraço

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