segunda-feira, 13 de abril de 2020

O LODO E AS ESTRELAS - Parte 1




Barragem de Picote

Folhear “O Lodo e as Estrelas” é ler um livro proscrito. O testemunho de um Tempo. De um tempo passado amassado em sangue, sofrimento e solidão. Talvez por isso em tempos remotos, o livro de Telmo Ferraz morreu à nascença. O relato incómodo daquele passado que na época era presente fez a polícia politica abafar uma realidade negra. Falar em Telmo Ferraz é lembrar um padre que viveu a saga dos barragistas, que por entre fragas e do meio do nada construíram as barragens de Picote, Miranda e Bemposta por esta ordem – barragens do Douro Internacional que produzem hoje vinte cinco por cento da energia nacional. Telmo deu tudo de si. Acarinhou e protegeu filhos da fome. Ofereceu o pouco que tinha em bens materiais, até ao dia em que apenas ficou com a sotaina que lhe escondia o corpo e até das calças se despojou. De fortuna, apenas as estrelas do Firmamento e um coração doce. O livro de Telmo é um livro cru. Talvez de uma beleza literária que se confunde com a inocência de um prosar realista e torturante. Fica o aviso que só lê quem quer. Fica o resguardo que escolherei episódios colhidos ao vento em várias páginas. Fica uma lembrança, uma homenagem e uma memória. Lembrança de mineiros do carvão que demandaram as barragens por mais uns miseráveis escudos por mês. E dos outros. Dos que morreram minados dos pulmões. Também dos que sobreviveram para construir um Portugal melhor. Para que conste.

“ O Zeca vomitou sangue. Um sangue vivo, quase encheu um tacho! Esse tacho de sangue é o meu exórdio. Que todos me perdoem. Riam-se de mim. Mas, pelo amor de Deus e dos nossos pais, peço um olhar de piedade para todos os personagens deste livro. São personagens reais. Temos os mesmos nomes e a mesma vida, no nosso pequeno mundo – uma barragem.”

O Boné Preto

O dia passou. O mês também. Tenho medo dos dias. Tenho medo dos meses. Cada dia uma coisa nova. Hoje, impressionou-me um homem que, retorcendo, ao mesmo tempo, com as mãos compridas, o boné.
Há três semanas que espera …
Porque me impressionou tanto este homem? Por retorcer o boné? Talvez. Os dedos compridos, retesos, atrapalhados, a mastigar o boné como se tivesse entranhas e, dentro, o pão dos filhos.
O boné preto! Os dedos compridos !

Breve, continuarei a folhear este livro para quem me queira acompanhar. Uma Via Sacra de espinhos. Um passado negro português.
Quito Pereira   

7 comentários:

  1. Aqui fica a primeira parte, Fernando
    Um abraço

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  2. Esta primeira parte já deixa antever o que virá nos próximos.

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  3. Quito:
    Posso esclarecer-te que das 50 hidroelétricas em Portugal aquelas 3 das 5 do Douro Internacional (as outras 2 são espanholas) são as únicas portuguesas que produzem mais de 1 milhão de GWh por ano. É de facto um número impressionante, mas claro que fica muito longe dos 25% da energia nacional. Estou há mais de 25 anos sem atividade profissional do sector e não tenho dados rigorosos, mas vou falar com quem esteja dentro do assunto.

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    1. Manuel Cruz, a informação dos 25% está sustentada num programa que há dias deu na RTP 2 e que se intitulava " O lodo, as estrelas e o sábio". Aliás um belo documentário sobre a história destas 3 barragens e com testemunhos até de gente que ainda vive nos bairros definitivos. Curiosamente, alguns bairros provisórios ... também passaram a definitivos, porque as casa ainda lá continuam. Algumas casas dos bairros definitivos foram até compradas como cadas de lazer. Tem para mim um acrescido valor, porque um familiar meu ali viveu e por ali andei a ver o que foi aquela realidade. Sentado e a olhar para o rio, dei comigo a meditar sobre aquela realidade remota, mas foi o programa da RTP 2 o mote para os 4 textos que escrevi em homenagem aos que por lá andaram. Portugueses que construiram as barragens e também um pouco da História de Portugal.
      Um abraço

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  4. Visitei hà já uns anos a barragem do Picoto. Fiquei impressionada com a brutal dimensão da obra. Nesse tempo, segundo as explicações do engenheiro que nos recebeu, e que seria o único trabalhador naquela imensidão, pois estava numa sala especial donde visionava (pareceu-me), outras barragens... Descemos a uma grande profundidade. Meteu algum receio!!!!.
    Depois fomos visitar o Bairro dos trabalhadores e já um pouco degradadas várias zonas de lazer. Como foi já hà muito tempo não me lembro bem do que vi.
    Mas deve ter sido uma obra que empregou uma multidão de trabalhadores, que como dizes trabalhavam desumanamente...
    Nao fazia ideia, mas com o desenrolar de novos episódios ficarei a conhecer melhor.

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    1. E verdade, Fernando. Nas 3 barragens e se bem percebi passaram por lá 22 OOO pessoas. Uma vez fui às entranhas da barragem da Aguieira. Um mundo !!! De vez em quando havia um corte de energia de cerca de 1O segundos e ficava tudo às escuros e tocava uma sirene. Era arrepiante e metia respeito ...

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