sexta-feira, 3 de setembro de 2021

APROVEITA O QUE NÃO PRESTA E TERÁS O QUE É PRECISO

 Aproveita o que não presta e terás o que te é preciso.

Nesta sociedade de consumo descartável, em que muito parece efémero e pouco é duradouro, fica-nos a sombra daquilo que alguma vez tivemos e hoje gostaríamos de voltar ou continuar a ter.  Usamos, dispensamos e botamos fora tudo o que já não serve, por defeito ou feitio. Falo de coisas, de ideias e de pessoas. 

Quando uma coisa é deixada de parte ou lançada fora, não é só ela que se vai: com ela seguem as ideias e vivências que evocaram e as pessoas que de alguma forma se relacionaram com elas. Um brinquedo que na altura nos parecia velho e sem uso, que acabamos por deitar ao lixo, levou consigo muito mais do que era. Não o vendo, já não lembramos aquele ou aquela que no-lo deu nem os amigos que à volta dele brincaram. 

Em contra corrente, temos agora em nós um museu da alma que nos traz a saudade do que já tivemos. Por isso, compreende-se que alguma coisa fique no tempo e permaneça perto, à vista da passagem repentina do olhar. Todos guardamos uma peça de loiça dos avós, um livro da juventude, um brinquedo da infância e tantas coisas mais. Achamos mesmo o máximo ver à venda o livro da nossa antiga 3ª classe, o treco-treco ou a trotineta de madeira que se comprava nas feiras. Só não pegamos e não damos uma volta airosa pela rua porque temos aquela  vergonha da adultice, de ar sisudo, que não acha piada a estas extravagâncias.

Recordo-me de uma  profissão que na minha infância já quase estava extinta, mas que ainda tive o privilégio de ver operar. Lembro-me vagamente do deita gatos que passava pela aldeia e, de uma vez só também compunha sombreiros de pano, compunha potes e amolava tesouras e navalhas. 

O deita-gatos e o compõe-potes tocavam profundamente nos corações das donas de casa que tinham tido a visita do infortúnio num prato ou travessa que se partira ou num pote que ficara tempo demais ao lume sem água e, por isso, se rompera. O amolador era mais eclético e salvava a figura do dono da casa, mas também da menina namoradeira que precisava do seu sombrinha para andar de enleio às voltas do adro ou da feira.

O deita gatos passava e, meticulosamente, praticava uma cirurgia plástica que, pragmaticamente, dava mais uns anos de vida ao prato ou à malga, ignorando que, muitos anos depois, o seu trabalho valorizaria tais objetos e que, por cada gato, haveria uma memória  a evocar. Ninguém pergunta ou sabe a idade do prato, mas, ao vermos os gatos, vemos logo que é coisa antiga e sobrevivente ao tempo. Mesmo que não seja antiga, é assim que a vemos. Se para a senhora da casa  foi um remedeio necessário,  para os herdeiros é uma preciosidade. É estranho? Claro que sim, mas é desta forma que as memórias se fazem.

Uma curiosidade linguística: a palavra “gatado”, significando algo errado, imperfeito ou corrigido, tem a ver com o exercício desta profissão e, na literatura, um dos poetas maiores do século XX não deixou passar ao lado a subtileza dos remendos no corpo e na alma. Deixo-vos com ele:

Ó rapaz que deita gatos

Deitas gatos só em pratos,

Só em tachos e tigelas,

Ou deitas gatos também

Nas almas e no que há nelas

Que as quebra em mal e em bem?

Ah, se, por qualquer magia,

As tuas artes subissem

Àquela melhor  mestria

De pôr gatos que se vissem

No que sonho e no que sou!

Então...Qual então! Que tratos

Dei a um poema que surgiu!

Só consertas, só pões gatos

No inteiro que se partiu.


O partido nasceu

Nem tu consertas nem eu.

Fernando Pessoa, 1933

Foto: Deita Gatos, 1910. Aguarela  sobre papel. Coleção Museu Almeida Moreira, Viseu. Exposta temporariamente no Museu Grão Vasco.

Por Prof Antonino Silva

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