quarta-feira, 31 de maio de 2023

ENCONTRO COM A ARTE-PROSA - UM CONTO DE GEORGINA FERRO

Eram os últimos dias do mês de Maio de 1954. O mês de Maria e do terço. O mês dos dias crescidos, de sementeira do linho, mês de cuidar dos batatais, das hortas, de levar as vacas ao lameiro. Era o mês de um corropio constante desde o lusco-fusco ao tombar na cama logo após a ceia. 

A Ana já tinha oito anos. Era uma mulherzinha. Já partilhava os afazeres do lar com os pais .

     _ Ana, Anaaaa! Empina-te-te filha!  Já te chamei três vezes!  Vá ergue-te que o pai já está quase a acabar de ordenhar a Malhadinha!  

     A Ana bem ouvia, mas o sono era tanto!... Só quando a mãe lhe gritou pela terceira vez, já "enfadada" , é que a garota se sentou na cama esfregou os olhos e sorveu o ar perfumado a café acabado de assentar com uma brasa incandescente.

     _Ai Rábia te pele, filha.  O pai já quer ir fazer a cama à vaca e ela ainda na loja! Toma, veste o vestido. Tens o avental nas costas da cadeira. Já pus água quentinha no lavatório. 

      A Ana ia acordando e como um autómato ia obedecendo à mãe com a lentidão  de quem precisava de mais uma hora de aconchego dentro das mantas. 

    _ Deite-me a sua benção, minha mãe!  - pediu ela de mãos postas.

     _  Que Deus te abençoe, minha filha.  Vá, pula da cama! Avia-te que já tens a malga com o pão migado. "Inda bem-não" soam as seis e a vaca não come nada. E não pode ficar lá no lameiro "por mor" do milho já bem nascido no "tchão" da ti Marizé! 

   E a Ana acordou de vez.  Lavou a cara  e sem grande apetite foi engolindo as sopas de café com leite.  Num guardanapo atado pelas quatro pontas já estava uma fatia de pão com presunto para a Ana levar. Começavam a dar as seis horas no relógio da torre. 

    A cachopa já ia de pés descalços porta fora quando a mãe a fez voltar para calçar as alpargatas. Só então desceu as escaleiras do balcão para pedir a benção ao pai que a esperava  no curral.

     E lá foi ela atrás da vaca que  marcava a passada com o seu bamboleio e o tilintar da "chocalhinha"  Passaram o portal ainda antes das seis e meia. 

     A Ana aconchegou-se no cantinho da parede voltado para o nascer do sol e embrulhou-se melhor no xale que trazia pelas costas. Tinha as mãos "arreganhadas".  Bem podia ter trazido o livro da lição para estudar melhor, mas nem disso se lembrara! Quando chegasse a casa ainda teria de ir ver bem os significados (lembrou-se ela). Achava que não os tinha decorado muito bem! Mas a lição já a lia bem como lhe reparara o pai.  Uma libelinha roxa veio tirá-la daquela modorra que  a prendia. Levantou-se e foi tentar apanhá-la naquele constante poiso aqui, poiso ali... Já te apanhei.... quase, quase... Oh!, já fugiu para longe.

    Um lagarto verde já espreitava o sol numa lage da parede.  Era hora de comer a merenda e ir levar-lhe um miolinho de pão. Não tardaria o toque das oito e um quarto. Tinha de se apressar a voltar a casa.

Deram as oito e meia quando atravessava o povoado.

   À chegada foi "um ver se te avias"! A vaca foi para a loja. A Ana foi lavar as mãos, tirar o avental sujo e vestir um lavado, pentear o cabelo e prendê-lo com uns ganchinhos de arame para não irem para os olhos enquanto escrevia. E ala que se faz tarde. Saquinho de sarja a tiracolo com os livros e a pedra de ardósia.

Georgina Ferro


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