quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

CANTAR AS JANEIRAS

 Levante-se daí, senhora!


As tradições da quadra do Natal e das celebrações adjacentes no tempo são diversas e as suas origens perdem-se no tempo. Quando damos conta, estamos envolvidos nelas e participamos porque lhes achamos piada ou porque nos motivam de forma bastante para o fazermos.


Desde que me conheço como rapazote, sempre participei no cantar das janeiras e dos reis, sem questionar a origem nem a razão desses rituais. Tudo me parecia simples, castiço e satisfatório. Com familiares e amigos, com ou sem instrumentos, íamos pelas quintas e lugares da freguesia a cantar versos que anunciavam as novas do nascimento, que desejavam boas festas e vida próspera no ano que se iniciava, que antecipavam a chegada dos reis do oriente e outras notícias mais. 


Mas a parte mais interessante era aquela em que desfiávamos a lista dos pedidos das dádivas pretendidas. Mesmo conhecendo a escassez dos recursos económicos da família do lavrador ou habitante do local, não éramos nada parcos naquilo que elencávamos. Desde as nozes, mais acessíveis, até às moedas, mais escassas, tudo era descriminado, para evitar que os louvados se desculpassem com a falta de sugestões do que nos podiam dar. Não seria por falta de imaginação que a oferta não pingaria.


Porém, antes do rol dos pedidos, havia sempre um adoçar de vontades por via do elogio da beleza das filhas e da esposa do dono da casa, da virtude e honra da família e do caráter magnânimo do patriarca.


De lá de dentro acendia-se uma luz (alegria suprema e sinal de que fôramos ouvidos) e havia uma porta que se abria.  Recordo-me das hierarquias da apresentação: o pai abria a porta e a mulher espreitava atrás dele. Mais atrás, de mão dada com um irmão mais velho ou agarrados à saia da mãe, viam-se os mais pequenitos, curiosos com a música e estranhos por verem tanta malta à porta.

Então trocavam-se votos de bom ano, às vezes perguntavam o que queríamos. A boa educação e a falsa modéstia levavam-nos a dizer que apenas tínhamos ido dar as boas festas, mas a verdade é que a imaginação já estava a ver uma chouriça cortada na chaminé ou uma taleiguinha de figos secos para apeguilhar o vinho tratado ou o anis que noutra casa seria oferecido.


Eram noites longas, geralmente frias, e terminávamos em casa de um de nós, com os pés cansados e molhados, para se proceder à divisão da coleta. Pouco ou muito, tudo contava e nunca ninguém foi catalogado por dar oferta escassa ou não dar nada. 


Hoje, olhando para esta tradição, vejo muito mais do que aquilo que acontecia na altura. Podemos imaginar uma tentativa de repor uma certa ordem na gestão da fortuna de uns e de outros. O tom laudatório dos cantos dá a ideia de que estes eram cantados pelos pobres às famílias ricas, aproveitando as vontades mais amolecidas pelo espírito da quadra. O elenco dos bens a ofertar apela à abundância e a umas certas mãos-largas que os pobres não teriam.


Como exemplo das considerações feitas acima, deixo-lhes uma das mais completas composições que conheço sobre as janeiras:


“Boas festas, Santas festas,/ 

está a alva a arruçar. /

Venha-nos dar as janeiras,/ 

que temos muito que andar.


Senhora que está lá dentro,/ 

linda rosa encarnada,/

mande a moça à salgadeira/ 

dar esmola avantajada.

Uma chouriça para mim/ 

outra para o meu camarada. /


Dê-nos figos do sequeiro,/ 

a bola do tabuleiro, 

Uma peça de fumeiro,/ 

ou da burra do dinheiro. /


Se lhe custar a dar isso,/ 

as castanhas do caniço.


A sua adega tem vinho,/ 

de beber nos pode dar./ 

Tem porco na salgadeira,/

 já não falta que trincar.


Levante-se daí, senhora,/ 

desse banquinho de prata,/

venha-nos dar as janeiras,/

que está um frio que mata.” 


Por isso, levantem-se daí, senhores, e tenham um ano de 2024 muito feliz.

Prof Antonino Silva





4 comentários:

  1. São mesmo saudades da Lurdes
    Anos maravilhosos.
    Os jantares no Dom Duarte, Janeiras aos ocupantes dum carro,
    Casa do Quito/São, rua da Guiné - Olinda linda, rua Vasco Gama portão do Sabino com um vinho do Porto, em frente casa da amiga da Lurdes, ao lado o meu irmão Paulo/Maria Alice, rua Infante Santo😃,CNM, Samambaia, casa dos Vianas,etc,etc!
    Há as fotos e videos para recordar!

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    1. E em cada ano eu comprava e levava um gorro diferente...

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