quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025

TEXTO DO PROFESSOR ANTONINO-CAMINHEIRO DA BOTA CANSADA-DE QUE FIZ PARTE DRANTE ALGUNS ANOS

 

Apula aí e aprende!

 

Quem caminha sem destino, só pode mesmo sentir prazer em cada passo que dá. E é essa a magia do caminhar. A beleza dos caminhos não está na chegada; está no percurso. É no percurso que as coisas aparecem, que as curvas se desmontam em novas imagens que nos esperam logo ali e que as histórias se desenrolam nas telas da natureza. 

Mas cada história precisa de atores  e cada ator precisa das suas falas, falas essas que desfilam assuntos que vão das tripas de Deus aos gatos que mexem nas panelas, como dizia o castelhano do Auto da Índia.

Foi exatamente num dos caminhos sem destino que nos achámos em Vale Longo do Côa, hoje Valongo, e noutros tempos também conhecidos como “Tamanquinhos”,  numa terra de moleiros. 

O ligeiro cansaço começava a fazer-se sentir quando decidimos entrar e abancar no café/tasca da Associação Cultural da aldeia. À falta de necessidade de café, propuseram um Favaios fresquinho..Não que a sede fosse muita, mas ainda não tínhamos almoçado. Havia uma só mesa longa, onde toda a gente se sentava e quem senta à mesma mesa é amigo e não há outra maneira de dizer as coisas.

- Então, o que andam a fazer? A caminhar?

- Sim, viemos dar uma volta e ver a ponte de Sequeiros. Muito bonita.

- Ai é. Sabe que foi por ela que os franceses passaram e deram cabo aí de tudo. Mas o povo  recolheu-se aqui debaixo de uns barrocos e coube lá toda a gente. Depois de os franceses se terem ido embora, a última pessoa a sair chamava-se Maria e disseram-lhe de fora:  “Anda Maria que já só há um!” Então ficou conhecida aquela gruta como Lapa de Maria.  Os de fora pensam que é uma coisa religiosa, mas não é nada disso.

Metia conversa como se nos conhecêssemos há anos. Tinha nos olhos a cor de cada ano vivido e o sorriso era franco. Confessou a alcunha dos habitantes, conhecidos por “tamanquinhos”, pois noutros tempo faziam-se na aldeia as solas dos tamancos e das socas, a partir dos paus de amieiro, abundantes nas margens do Côa. Lembrei-me de quando usava também os tamancos comprados na feira de Lamego e das estratégias que o meu pai usava para lhes dar mais vida. Para que durassem nos pés da canalhada, pregava-lhes uns pneus por baixo e à frente punha umas testeiras feitas de lata recortada de embalagens de azeite, fixadas por brochas arredondadas. Mesmo assim, usar uns tamancos  tão catitas não era muito confortável e não nos deixavam jogar à bola, porque uma canelada com socas ou uma trivela com as testeiras perfurantes eram sempre de evitar. 

Outra cara resolveu ensinar-nos palavras que só ali se usam. Com gestos e explicações detalhadas falaram-nos do verbo “apular”, apanhar um objeto que vai pelo ar; falaram-nos de ir tomar banho em “pelo” e da diferença subtil entre “pulo” e “salto”. Explicou ainda por que razão esta terra era conhecida por terra de moleiros, evidências que se estendem pela margem esquerda do rio, uma miríade de moinhos de construção que nunca tinha visto. 

Mais adiante entrou um casal que também se sentou à mesa. Vivem em Penamacor, mas vêm à aldeia no fim-de-semana. Também conversaram como se fôssemos família. Ao sabermos que éramos de Lamego, mas a viver em Coimbra, debitaram os segredos de casa, dos familiares que já trabalharam por lá e do filho que hoje vive na Polónia, mas que tirara o curso de Economia em Coimbra. Nunca tinham visto nem ouvido que tanto se jantasse na cidade do Mondego. Pois eram jantares de curso, jantares do carro, jantares disto e daquilo… enfim, um abuso de jantares. Mas achavam piada. Lembrei-os de que daqui a quinze dias seria a festa de Aranhas e acharam estranho que soubéssemos dela. Explicámos que costumámos ir lá com a Bota  e ficou combinado que nos procurariam no dia.

Precisávamos de continuar a andar e levantámo-nos para irmos pagar a despesa. Quando perguntei quanto era, disseram que já estava pago. Nem valeu a pena reclamar. Não conseguimos saber quem foi, pois tantos olhares se riram.

- Atão a gente ia deixar as visitas pagar? Nem pensem.

Restou-nos agradecer e prometer voltar, porque nos pertence voltar aonde nos tratam bem. É destas curvas do caminho que falava.

Antonino Silva

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