quarta-feira, 15 de março de 2017

O MAR À PINOTA ...



 Mar bravo. Bravo mar ...

Largar as amarras do pensamento neste dia de sol de Fevereiro. Saudar o passado como se ele fosse o  presente. Lembrar as férias de infância e partir à desfilada rumo à Praia da Nazaré.

Pressinto-lhe no rosto a alegria da chegada. De recordar esta e aquela casa onde viveu momentos inolvidáveis na companhia dos pais e irmãos. Era um mês inteiro de glória, de correrias pela avenida, de perseguição ao homem dos “Robertos”, aqueles bonecos de praia que o artista manuseava com as mãos, escondido numa pequena estrutura em madeira com umas saias. Os bonecos eram a alegria da criançada, que os via aparecer pela parte superior daquele palco improvisado e itinerante, que corria o areal de lés a lés, na procura dos magros tostões que iam caindo com um som metálico num velho púcaro de lata, pela generosidade da assistência divertida, com as crianças em êxtase naquele mundo de fantasia.

Inevitável era o polícia e o ladrão que personificavam o bem e o mal. O polícia de bigode negro, corria atrás do ladrão com o cassetete e … toma … toma … toma … desancava a cabeça do meliante, perante a alegria e as palmas da pequenada.

Mais tarde também com os filhos. Um renovar de memórias numa praia da Nazaré já mais cosmopolita e talvez menos genuína. Mas a Nazaré de Dom Fuas, terá sempre o encanto das varinas das sete saias e o peixe cor de prata a saltar na malha das redes. E o elevador que, no seu lento caminhar, leva o forasteiro encosta acima à descoberta de uma lenda.

Embrenhando – se pelas ruas estreitas, a minha companheira de viagem lá vai recordando tempos de felicidade. Naquela casa era o cinema e foi ali que vi um filme dos “Beatles”, diz-me com o entusiasmo de quem revive o momento.

Cansado de tanta andança, sentei-me junto ao mar numa esplanada num momento a sós. Direi antes, na companhia do mar sereno e de um sol fagueiro. Foi com perplexidade, que vi um Atlântico dócil e um areal encapelado. Sim, porque as máquinas fizeram barreiras com a areia da praia para suster as arremetidas do mar. Enormes castelos para proteger as lojas e a avenida principal da Nazaré.

Dei comigo a pensar que, com aquele mar tão calmo, quem dirá que esconde o diabo no ventre. De repente desfigura-se, apodera-se de ira e leva tudo à sua frente sem defesa.

De novo com a minha companheira, passeamos pela avenida. Ali, junto a uma esquina, um casal vai vendendo recordações da Nazaré. Ele, o senhor Orlando, já de idade simpática, sentado numa pequena banca, com os seus dedos grossos e óculos muito graduados, vai produzindo pequenas maravilhas, como pequenos barcos coloridos em madeira, atrativos ao olhar de quem passa. Ela, a sua mulher, tem a alegria a iluminar-lhe o rosto e parece estar de bem com a vida.

O artesanato alusivo ao quotidiano dos nazarenos, que se pode ver em quase todo o comércio local, é a alma de uma terra que balança entre um mar que a abraça e os turistas ávidos de sol, de praia, e de aventuras que ajudem a sacudir as preocupações de um ano de canseiras.    

A compra de algumas recordações, deu pretexto para uns minutos de conversa animada. De novo lembrar o passado e falar do herói do momento, um tal MacNamara que cavalga o “Canhão da Nazaré”, quando o mar está à “Pinota”. Um hino ao heroísmo.

O mar bravo é o mar à Pinota, esclarecem então os vendedores, enquanto vou observando os artigos expostos dos mais variados preços.

Pinota é nome de um homem. Neste caso, de uma figura típica de tempos remotos, que era conhecido em toda a vila e muito acarinhado na terra. Um dia, um mar zangado alagou a avenida com tal violência que o tragou e arremessou contra a parede de uma casa, provocando-lhe a morte imediata.

Grande foi a consternação das gentes do mar naquela época. Mas ele, o filho da terra, apenas morreu fisicamente, porque continua vivo na mente daqueles que o recordam. Mas também o respeito pelo mar grosso e profundo, num duelo que se manterá pelos séculos, entre a força imortal da natureza e a fragilidade daqueles que com ele convivem, batalhando as ondas na procura de sobreviver dia a dia na busca do sustento que um mar generoso mas por vezes cruel lhes dá.

O nome emblemático do infeliz Pinota, passará de geração em geração, na boca dos homens e mulheres da formosa Praia da Nazaré. 

Talvez ele – no seu triste destino - seja tão imortal como o mar.
Quito Pereira                           

8 comentários:

  1. Que bela narrativa. Fez-me lembrar O Velho e o Mar (The Old Man and the Sea), de Ernest Hemingway.
    Quito, muito antes, nossos pais nos diziam: se alguma vez você se perder de nós, procure imediatamente um policial, para pedir ajuda.
    Hoje, infelizmente, dizemos aos nossos filhos: Fique longe de um policial!
    (Claro que em todas as funções há de se separar o joio do trigo).

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  2. Um texto impecável como a que já nos habituaste.
    A propósito da tua conversa animada com o artesão, lembrei-me duma conversa que tive com um fulano (do povo) nesta 2ª feira no Piódão. Temos que lá ir, para eu to apresentar e para conversares com ele.

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    1. Alfredo...vai contando-nos essa conversa...enquanto o Quito chega por lá.

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Ainda bem que voltei ao blogue, Quito. Ler os teus escritos é uma maravilha. É estar a ver o que escreveste.
    Um abraço.

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  4. Na década de 70 do século passado vivi 6 anos na Nazaré, na avenida de Olivença, conhecida como o prédio do dr Laborinho. De manhã, pela janela via o mar, o Guilhim e, nos primeiros dias de março a Berlenga. Agora que estou a menos de 40 Km, quando por lá volto não encontro o retorno daquele tempo, se calhar porque os meus melhores amigos de então se lembraram de passar para o outro lado da vida.

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  5. Mais um excelente texto do Quito. Mesmo muito bom. Não sendo novidade pela sua qualidade, este texto porque se passou na Nazaré faz-me recordar a última vez que estive (estivemos) nesta linda cidade, agora nas bocas do mundo por causa das suas ondas Pinotas. É verdade lá estivemos, passámos por outras praias (episódio do frango...), mas foi aqui na Nazaré que mais nos divertimos e que bom foi ver a Gina e o Jorge Carvalho tão alegres e brincalhões! Mas esta vida nem sempre corre de feição. O Jorge está connosco, mas a Gina nesse dia despediu-se dela...
    E como sempre se diz, a vida continua dando-nos uns dias bons, outros nem tanto e outros ainda mesmo maus...
    O que este teu texto me faria recordar.
    Obrigado Quito, continua de quando em vez escrevendo estas maravilhas, que como dizia o poeta,” dadas ao mundo por Deus, que todo o mande,. pera do mundo a Deus dar parte grande”

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  6. O Quito passeia e vai rebuscando memórias e relata-as com uma realidade que nos leva a acompanhá-lo.

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