segunda-feira, 12 de março de 2018

UMA OUTRA REALIDADE, UM OUTRO SENTIR ...






Um passado ...

Um repartir de afetos. De Lagos do Infante Dom Henrique, à estátua solene de Amato Lusitano. Do mar salgado e amplo que se alarga até à linha do infinito, ao calor e ao cantar das cigarras num horizonte de fogo.

Duas realidades distintas. Mais de quatrocentos quilómetros separam o Atlântico algarvio sereno e azul, dos mistérios da Estrela e do Moradal em final de tarde, a convidar à reflexão sobre os caminhos da Vida.

A cidade beirã resiste às altas temperaturas de um sol escaldante de verão. A cidade está desfalecida de ritmo e apenas as sombras das árvores que povoam os espaços públicos, são um oásis a quem procura defender-se da canícula. Aqui e ali, alguns repuxos de água límpida tentam amenizar a calma sufocante.

Meto o carro no subterrâneo fresco do Parque de Estacionamento da “Devesa”. Subo as escadas e fico cego pela claridade que tomba sobre os telhados das casas antigas, que se alinham como soldados na parada de um quartel. Deambulo por aquele espaço. Alguns estabelecimentos de cafetaria e esplanadas, dão alguma cor ao marasmo dos dias. O “Docas”, nome estranho a lembrar as delícias da frescura dos rios ou do mar, alberga alguns clientes que dentro do estabelecimento gozam da presença de ar condicionado.

De novo pisando terrenos que me são familiares, vou tricotando a vida ao sabor de recordações. De voltar a reencontrar gente que me saúda. Que ama a sua cidade e as suas raízes de uma Beira profunda.

Ao volante do carro, desço a Avenida 1º de Maio e descubro esta ou aquela figura carismática da cidade. Gente para quem a vida foi uma cautela de lotaria em branco. O Godinho sobe a avenida em passo apressado como sempre foi seu timbre, de camisa empinada pelo seu ventre obeso. Fala sozinho e ri-se nos seus impenetráveis pensamentos. Mais abaixo, esbarro com o companheiro da mulher da tabacaria. Passa os dias encostado a um muro em frente do estabelecimento, a perna esquerda fletida e a sola do sapato ferrada contra a parede branca e nua,  fumando cigarro atrás de cigarro. Tem a tez roxa e gaba-se de beber dez cálices de Vinho do Porto ao pequeno - almoço. 
Ela, a mulher, de rosto triste que nunca vi sorrir, mal se movimentando no compartimento exíguo atafulhado em mercadoria, vai vendendo notícias plasmadas nos jornais com títulos sensacionalistas. E há sempre quem compre. Tudo isto observei da janela do meu carro, como um filme de que vi a antestreia já muitos anos passados.

Estou cansado. Remeto-me ao silêncio da minha casa. Olho o fogão de sala e a cinza e que ainda se acumula no seu interior. Cinza que são restos do passado. De um passado de memórias que muitas vezes desfilaram perante mim, no rubro incandescente de um tronco de azinho, na lareira acolhedora dos frios de inverno.

Amanhã partirei. Castelo Branco fica para trás, aguardando o meu regresso. Numa tarde de outono prometo voltar. Talvez acenda a lareira, para me confrontar com outras memórias e realidades. Agora tenho um compromisso – Coimbra, o Mondego e o Choupal esperam por mim.
Quito Pereira        

  

1 comentário:

  1. mais um bom texto que desta vez passa pelas lembranças vividas no triângulo mar de Lagos, campos das Beira Serra e...finalmente o regresso à cidade de Coimbra.
    As duas primeiras não ficarão esquecidas e a sua presença se fará com alguma regularidade.
    Um abraço

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