- Nos anos cinquenta do século passado, deambulavam pelo nosso Bairro algumas figuras muito conhecidas na cidade. Gente simples e carismática, que gozava da simpatia geral dos habitantes do antigo Bairro Marechal Carmona. Hoje, venho lembrar de uma dessas figuras que por este Bairro andou, calcorreando ruas e praças naquela que era a sua profissão - barbeiro. Não possuía estabelecimento que se lhe conhecesse nem emprego por conta de outrem. Era pura e simplesmente barbeiro ao domicílio. De mala na mão, lá ia de porta em porta visitando os clientes habituais, entre ao quais eu me incluía. Os meus cortes de cabelo eram sempre momentos épicos. Criança que era, detestava aquele sacrifício supremo de me sentar num banco de cozinha, enquanto o Albino, para suavizar o meu choro convulsivo, ia relatando jogos de futebol dando uma entoação brasileira à voz, à mistura com o som do matraquear da tesoura e do pente castanho e gasto com que me aparava e alisava o cabelo. Gradualmente, o meu choro transformava-se apenas num soluçar, quando me apercebia que o Albino estava nos procedimentos finais, ou seja, quando de navalha de cabo preto bem apertada na mão e o dedo polegar em riste apontado ao céu, me acertava as patilhas. Ato contínuo, punha - se à minha frente, fletindo as pernas, ficando cara a cara comigo, balançando a cabeça de um lado para o outro como se fosse um pêndulo - certificava-se se as patilhas estavam à mesma altura. Aquele momento ainda hoje me assusta, ao lembrar aquela cara magra em que se destacava um nariz afilado e um respeitável bigode negro e, ainda hoje, ao relembrar a sua figura frágil, mais tenho a convicção que aquela magreza pouco tinha a ver com a sua matriz genética, mas com um rosário de dificuldades e privações. E o corte de cabelo terminava sempre numa apoteose de pó de talco derramado em quantidades generosas sobre o meu pescoço e num enorme pincel com que o Albino me limpava os olhos e as orelhas em movimentos frenéticos. Apesar disso, era um homem divertido e reinadio. Vivia numa rua estreita, numa casa humilde junto à Sé Velha, mesmo em frente a uma agência funerária. Dizia por brincadeira que quando abria a janela do quarto de manhã e dava de caras com os caixões, ficava logo “bem disposto”. Em determinada tarde domingueira de verão, montou- se no Choupalinho, junto ao Mondego, um ringue de luta livre. O lutador, que se intitulava de nacionalidade grega, desafiava as cerca de cinco dezenas de basbaques que circundavam a arena para com ele medirem forças, sem que alguém se atrevesse a defrontar tal figura. Atemorizados, todos olhavam com respeito aquela montanha de carne e músculos de aço, até que, vinda de lá de trás uma voz resoluta se perfilou: vou eu !!! Com assombro, todos viram então o Albino dar um pulo felino para uma entrada no ringue em apoteose, colhendo as palmas e o respeito dos circunstantes . Teve azar. Conforme deu o salto, tropeçou numa corda que delimitava o espaço e desabou no recinto, batendo com a cabeça no chão e perdendo os sentidos, que o mesmo é dizer que o corajoso Albino mesmo antes de começar o combate já estava KO. E assim se finou o seu momento de glória, tendo todos percebido sem grande esforço que perante luta tão desigual, aquele incidente mais não era que a antecipação do que certamente ia acontecer - o Albino barbeiro a sair do ringue inanimado… e de charola.
- Q.P.
terça-feira, 23 de abril de 2019
O ALBINO BARBEIRO ...
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A queda do Albino foi o que safou o grego de levar uma carga de pancada!...
ResponderEliminarPois foi ...
EliminarFui amigo do Albino barbeiro. Conheci-o, ainda eu era "miúdo", na Barbearia do António Ribas, ali na Estrada da Baira, muito perto do "Recreativo". Mais tarde, vi-o nessas deambulações e ia a minha casa cortar-me o cabelo. O sítio era na casa de banho, um mocho, toalha pelos ombros e o Albino a contar as suas "estórias". Foi algumas vezes a minha casa, comer coelho bravo que meu pai matava com frequência. Uma vez comeu um coelho inteiro, tal a fome que o afligia. Coelho frito "à moda da minha mãe". Depois veio a doença e o Albino, não digo que tenha ficado um "farrapo" mas.passou sérias dificuldades. Lembro-o com muito respeito.
ResponderEliminarmariorovira
Obrigado, Mário. Este texto foi feito em jeito de homenagem a uma figura que pela nosso bairro andou. Era bom homem e de facto passou muitas dificuldades.Guardo também dele uma grata recordação.
EliminarQuem não se lembra do Albino Barbeiro.
ResponderEliminarTambém passou algumas vezes por minha casa, onde cortou cabelo e cantou o fado.
Lembro-me de ele ter ido ao programa de Igrejas Caeiro aqui em Coimbra e cantou um fado...mas foi eliminado
Era o programa " Companheiros da Alegria" Uma nota de quinhentos não se pode deitar fora"
Cortou-me muitas vezes e durante muito tempo o cabelo. Primeiro, junto da Passagem-de-nível. Depois, na "Baixa", nas escadas da Igreja de S. Tiago. Bom homem!
ResponderEliminarPor fafar e "desbastar, cortar" .. Rui o seu faval também está a precisar...
ResponderEliminarUm abraço
Morei mesmo em frente ao Albino barbeiro, na rua das "Covas", na alta de Coimbra.
ResponderEliminarResidia com a mulher e muitos filhos, à noite regressava já com uma pinga a mais e cantava.
A minha mãe ajudava aquela família com alimentos e roupa...
Já no Bairro vinha cortar o cabelo do meu pai e do meu irmão.
E quando o Albino ia à Arregaça ver o União e se ocorria um momento de pouco barulho, ele gritava "VAI FALTAR A ÁGUA"
ResponderEliminarConcluí, há pouco, um post para o EG, pois o relato do Quito remeteu-me a uma situação, da minha infância.
ResponderEliminarO Diretor do EG irá divulgar, se aprovado, na data oportuna.
Concerteza e com todo o gosto e o meu muito obrigado será publicado amanhã, dia 26.
ResponderEliminarBeijinho com toda a amizade
Anseio que esteja à altura de todas as matérias aqui postadas.
EliminarCara Amiga
EliminarAs suas intervenções são sempre apreciadas. Tem ajudado este pequeno espaço de convívio a manter a chama acesa. Tem-nos dado a conhecer um pouco da sua vivência na cidade de Manaus. Mais relevante se trata, quando vai convivendo com este blog do lado de cá do Atlântico. É um ato de grande amabilidade e mais realça aquele ditado português que diz "ninguém é profeta na sua terra". Vamos andando e cada dia é um dia. O Fernando Rafael já lhe agradeceu e eu também a saúdo pela sua colaboração. Obrigado.
Acho que nao é do meu tempo! Como Barbeiros célebres, conheci o "PANAO", na Rua da Padeira (onde o meu Padrinho tinha uma loja de cordoaria e ceiras para lagares de azeite - alguém conheceu?) e evidentemente, o "BASILIO" da Visconde da Luz!! ESPETACULAR este texto do QUITO!!!
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