domingo, 27 de setembro de 2020

ENCONTRO COM A ARTE - PROSA/CONTO

Fanfarronices com batatas.

A consciência do nosso valor faz com que, alguma vezes, fiquemos ofuscado e teimemos em práticas que perdem a atualidade. Em todas as áreas é necessário seguir a moda dos tempos e evoluir. A dificuldade está em progredir ponderadamente para que não se perca a cadeia da mudança nem se choque de frente com o inédito. Saber encontrar a mudança na continuidade é um dom acessível a poucos, até porque confundimos continuidade com seguidismo e mudança com loucura. Uma das consequências de se ser pioneiro pode ser a soberba, a sensação de superioridade que não deixa olhar para o rasto que se deixou.
No governo dos povos e nas relações internacionais está hoje bem visível essa marcação de pioneirismo com arrogância quando se fala na busca de uma vacina para a pandemia que nos aflige. Uns dizem que são os melhores, outros que são os primeiros e todos têm o “orgulho de anunciar que…”.
Olhando para trás, vemos que, afinal, isso faz parte da condição do Homem e é na gestão da soberba e da humildade que se traçam os carateres de quem parte e de quem fica.

Lembrei-me de uma pequena história que envolveu birras de vizinhança e que ilustram que entre grãos de areia acontecem coisas que caraterizam toda a praia.
Na Quinta do Covelo, o caseiro fazia leilão dos seus dotes de agricultor e gabava-se de ser o mais ousado de todos quantos por ali havia no amanho das terras e na qualidade da produção. Tomava as iniciativas e toda a novidade que aparecesse naquelas encostas do Varosa tinham o seu selo. Pelas redondezas, nos anos a seguir, as pessoas comentavam as técnicas da poda, as novas sementeiras, as novas formas de decruar a terra ‘inventadas’ pelo caseiro da quinta. O homem granjeara fama de ‘engenheiro agrícola’.
Em abono da verdade, reconheça-se que merecia tudo quanto os patrões lhe pagavam, não só pelo esmero, mas também pela riqueza que, ano trás ano, ia amealhando nas contas dos proprietários da quinta, uns senhores que viviam lá longe, em Lisboa, e que só visitavam a propriedade uma vez por ano.
O caseiro tinha, na mesma proporção, a arrogância de quem se julga melhor e superior. Olhava com um certo desdém para os caseiros das quintas vizinhas e com uma superioridade imensurável para os pequenos agricultores que cavavam de sol-a-sol os campitos que escorregavam por aqueles socalcos íngremes.
O acaso fez com que, mesmo junto aos limites da formosa Quinta do Covelo, ao descer para o rio, o Zé Esperanço tivesse um rincão com meia dúzia de campos onde produzia, anualmente, menos de um carro de batatas. Para ele era coisa triste, porque essa produção não bastaria às necessidades da casa e, ainda antes da batata nova, ver-se-ia obrigado a mercar uns sacos aos vizinhos. No íntimo do homem havia quase a vergonha de não conseguir alimentar a família com as coisas que a terra dava. Parecia que a terra andava maninha e nem o estrume que lhe deitava resolvia. Aliás, essa frustração era tão maior quanto eram formosos os batatais do vizinho, com as tornas todas verdejantes e as belgas alinhadas pelos regos atalhados.
De nada resolvia perguntar qual era o segredo, porque o caseiro fechava-se em copas, apelava para a sua sabedoria e respondia uma frase que humilhava: “Isto é só p’ra quem sabe!” E o Esperanço calava a humilhação e a incompreensão. Não eram os solos vizinhos? Não tinha a terra a mesma composição? As batatas da semente não eram as mesmas? Se um ano eram Rambana, no outro eram “Ronconse” (Raconse) e o adubo também era o mesmo, que ele bem via. O Foskamónio comprado no Carrapatoso servia para todos. Não dava para perceber.
Contudo, como atrás de tempos vêm tempos, houve um ano em que as suas batatas pularam para os olhos do soberbo vizinho e tudo faria crer que, se debaixo da terra houvesse produção equivalente à rama, aquele ano seria de grande fartura. O caseiro do Covelo olhava com inveja incontida os pequenos campos a abarrotar de plantas verdes, viçosas e de caule grosso, uma garantia de grande e boa produção.
Contrariamente àquilo que ele costumava fazer, o Esperanço não guardava segredo da sua abundância. Encolhendo os ombros dizia ao vizinho: “Sabe, deixei de ir ao Carrapatoso e passei a ir ao Lúcio, que tem lá uma batata da semente de qualidade nova chamada ‘Canabeque’ (Kennebec) e um adubo novo, o Nitrolusal.” O caseiro ouviu-o pasmo, de boca aberta, mostrando a sua estranheza e procurava na cabeça uma explicação lógica, com a mesma insistência com que a língua procura na boca o dente que lhe falta. Não podia ser! Como é que o esperanço podia tê-lo ultrapassado na busca da novidade? Não! Devia ser outra coisa, mas não aquilo. A suas artes e técnicas não podiam ser batidas pela descoberta espúria de um zé-ninguém! Deixou-se ficar com essa certeza por mais um ano, esperando que o tempo repusesse as hierarquias e que voltasse a ser ele o melhor produtor de batatas da freguesia.
Porém, quando na primavera seguinte as batateiras do Esperanço davam já em crescimento o dobro das suas, despiu a arrogância e às 9 horas da manhã seguinte, estava ele à porta do Lúcio com o carro dos bois pronto. Mal entrou na loja, abeirou-se do balcão e lançou: “Bom dia, sr. Lúcio. Arranje-me aí quinhentos quilos de Nitrolusal e p’ró ano guarde-me 10 sacos de batata de semente ‘Canabeque’.”

Antonino Silva


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