sexta-feira, 30 de outubro de 2020

                                             

              

A LOJA DOS JORNAIS

O João é o Senhor João – um tratamento cerimonioso. Podia não ser assim, dos anos que nos conhecemos e das vezes sem conta que entro na sua papelaria que vende jornais mais honestos que outros, revistas de vidas cor – de - rosa e outras mentiras pardas. E o João – o Senhor João – lá está atrás do balcão, na sua estatura mediana, uns calções pelo joelho que o tempo ainda parece de lazer. No rosto, uma viseira transparente que não lhe esconde a calvice, na tentativa de se resguardar de um vírus que dizem que é chinês. Em cima do balcão, uma enorme garrafa de um liquido azul que serve para desinfetar as mãos e que quase dá para o cliente tomar banho de imersão. Mas o João – o Senhor João - não facilita. Lá me vai dizendo que nunca foi muito saudável e que já esteve três longos meses internado num hospital deste barlavento algarvio. Agora, recuperado das maleitas, dobra-se vagarosamente sobre balcão e com a ponta da esferográfica vai anotando todos os jornais e revistas que uma carrinha apressada lhe atira para dentro da loja, atados em molho com uma guita. Tudo feito sem pressas, mesmo que o cliente enfadado espere a vez de pagar o seu jornal favorito. Assiste razão ao João – o Senhor João – que tem que conferir a mercadoria com minúcia, que a margem de lucro é muito estreita. Para mais, a idade já não lhe permite grandes correrias. Por vezes, naquela lojinha de bairro, assiste-se ao render da guarda. A Filipa, filha do João – o Senhor João – rende o pai ao balcão no atendimento dos clientes – poucos – que entram. É afável e eficiente. Ao contrário da grande parte dos algarvios, é reservada e fala pouco ou nada. Mas cordata e simpática se interrogada deste ou aquele artigo que tem numa prateleira. Tal como o pai, não é de grandes discursos e nem sequer dá para trocar impressões deste descalabro social que se pressente. De manhã, todas as santas manhãs, o João - o Senhor João - abre o seu estabelecimento, na esperança das moedas que tilintem na gaveta da sua caixa registadora. Por mim, e enquanto por aqui estiver, ajudá-lo-ei a sobreviver, sendo sempre generoso nas minhas compras matinais. Mesmo num diálogo de silêncios que mantemos há tantos anos, temos uma empatia mútua. E um dia, quando o João – o Senhor João – depuser as armas e gozar a merecida reforma, a sua única filha e herdeira lá estará, para todos os dias rodar a chave na fechadura de uma loja que vende notícias verdadeiras ou falsas, coloridos livros infantis, esferográficas, tubos de cola e ilusões.

Que assim seja.

Kito Pereira

Cidade Lagos, 9 de Outubro de 2020    

14 comentários:

  1. Não conheço o João- o Sr. João - mas essa Loja de Jornais fez-me lembrar a Tabacaria Celeste gerida pela D.Rosa.
    Outros tempos em que não havia uma pandemia como esta que destroça a esperança e a alegria de viver.

    Naquele tempo, a D.Rosa ciente dos magros tostões que tilintavam nos bolsos da rapaziada, permitia-lhes que dessem uma vista de olhos aos jornais que traziam a ultima proeza dos pardalitos do Choupal frente aos colossos do futebol nacional.

    Sentados na esplanada do Silva iam devorando as noticias devolvendo depois à D.Rosa o periódico que ela tinha emprestado.

    Eram realmente outros tempos.

    Em que a juventude tinha uma vida pela frente e a esperança da concretização de sonhos.

    Essa mesma juventude que não imaginava que no dealbar das suas vidas lhe seria coartada a esperança que é a razão da existência.

    Um abraço Quito

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    1. Quando escrevi este texto, com a intenção de o oferecer ao Fernando Rafael para o seu blog, era incontornável não recordar a Tabacaria Celeste da Dona Rosa e do Senhor Ferreira. Aquele espaço na zona comercial do Bairro, é hoje um armazém de memórias. De memórias para os mais antigos, que tiveram a felicidade de viver num Bairro menos impessoal, mais fraterno, mais próximo com o próximo. Tabacaria Celeste, talho do Aires, mercearia do Alípio, o café do Silva, a barbearia Simões, foram bastiões de um Tempo. Eramos jovens. Jovens cheios de ilusões e irreverência. Um jornal é sempre um passaporte para o mundo. E ali, enquanto o Silva "comia" a "dama" do antagonista, nós liamos o jornal que a Dona Rosa na sua bonomia consentia. Agora tudo morreu. Resta-nos a memória dos dias ternos.

      Um abraço, Rui ...

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    2. Boa tarde. Não sei se ainda venho a tempo, mas há pelo menos duas lojas do Bairro que não vi aqui recordadas: uma, a do Sr. Dias, uma mercearia, logo ao principio da Rua Daniel de Matos, onde agora é uma tabacaria, e onde eu me lembro de ir comprar mercearias a granel, já há bem mais de 40 anos. Outra, uma retrosaria, a meio da mesma rua, onde ia comprar botões e linhas para a minha mãe. Alguém se lembra? Obrigado.
      António

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  2. Ora vejam como era a loja dos jornais em tempos idos no Bairro!!!
    TABACARIA CELESTE!!!!
    Pois a Dona Rosa da Tabacaria Celeste começou na rua Mousinho da Silveira, ao tempo rua J, que dava para o Cavalo Selvagem, entre o talho do Cristo e a Mercearia do sr Manel.
    Era um vão de escada que dava acesso através de uma longa escada para os inquilinos Senhor Carramona/Dona Piedade que tinham dus filhas:a Rosinha e a Celeste, e mais acima a familia do senhor Graciano/Dona Rosário com os filhos Graciana,Elói e Jorge.
    Foi a primeira biblioteca pública do Bairro!!!
    As escadas enchiam-se principalmente da malta jovem a ler desportivos e revistas!!!
    Por vezes ouvia-se a Dona Rosa em voz alta dizer: Carlitos deixa ver a Bola que está aqui o freguês dela!
    Teixeira deixa ver o Tintim que está aqui quem o mandou guardar.ETC,ETC
    Depois passados anos a Tabacaria mudou-se para a Rua Vasco da Gama e os fregueses de escada também....

    O Quito e Lagos é sempre um manancial de episódios com os seus velhos conhecidos desta cidade.
    Sempre tempo para bons conhecimentos, pois não gostava de molhar os pés...

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  3. Mudaste a fotografia e mudaste bem. Obrigado...

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  4. Que maravilha de momento... e que bela foto!
    Bem hajam, Amigos!

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    1. Olha, o Paulito de Caria também veio aqui espreitar. Fizeste bem e toma lá um abraço ...

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    2. Ele vem aqui sempre, Kitito. Ele e eu. Este blog são as nossas escadas da tabacaria Celeste.

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    3. Olha como era a jovem que ia buscar os jornais à Estação Nova,a pé pela Estrada da Beira ou pela linha do comboio,pois o lucro dos jornais não dava para o elétrico.

      Regressada à loja ia entregar a casa de alguns clientes.

      E assim procedia duas vezes por dia ,de manhã eram os que vinham do Porto e à tarde os que vinham de Lisboa.
      Mas sorridente junto do mostruário!

      Caminheira,por força das circunstâncias.

      Obrigada Quito por remexer nestas recordações através do Sr. João.

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    4. Caminheira mai'linda!

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    5. Obrigado Celeste por esta partilha de vida. Era sacrifício? Era. Mas havia algo de acolhedor e romântico naquele caminhar pela vida e pelos dias.
      Abraço

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    6. Celeste...És tu? Agora entendi a paixão do Dom...por ti. Linda!

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  5. Sim,amiga Chama a mamãe,com os meus 15 anos!

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