domingo, 15 de novembro de 2020

O HOMEM SEM NOME - TEXTO DE KITO PEREIRA

                                 O HOMEM SEM NOME …

Hoje está um dia pasmado de calor. Percorro as avenidas largas da cidade e as rotundas de canteiros floridos. Vou na demanda de uma churrasqueira e não estou particularmente entusiasmado. Frango de churrasco é remendo para o estômago em tempo de correria no frenesim das cidades. Mas não em tempo de lazer. Ali, naquela rua banhada de sol, o estabelecimento é pequeno e estreito. Lá dentro estão dois irmãos que, a suar, vão virando frangos assados a entregar aos clientes. São baixos e atarracados. Parecem saídos dum filme dos anos quarenta. Um, tem um pequeno bigode negro que lhe enfeita o lábio superior. O outro tem o cabelo ondulado empastado de brilhantina. Entro na loja e vejo que não estou só. Uma mulher gorda e tagarela vai falando com os irmãos e percebe-se que se conhecem há muito tempo. Também o sotaque dela não desmente a sua origem algarvia. Lastima-se que tem a casa cheia de gente e levou com ela dois sacos cheios de comida que pagou com duas notas de vinte euros dos quais não recebeu troco. E, da mesma forma despachada como falava, partiu. Então, encostado a uma vitrina, reparei num homem que emergiu do fundo do Tempo. Vestia modestamente e uma barba espessa forrava-lhe as faces chupadas. Fiquei com a vaga ideia de que um dia o vi numa rua da cidade com um balde na mão a vender figos. Mas, na bruma da memória, fiquei suspenso pela incerteza. Para mim, aquele era apenas e só um homem sem nome que vagueia pelo barlavento algarvio. Outro marinheiro do Infante e da Vida. Mantinha-se em silêncio, meditabundo, e quando questionado do que queria levar para almoçar, pediu somente duas pequenas asas de frango. Duas asas por dois euros. Com uma caixa de plástico transparente na mão, partiu. Dois euros seria o orçamento caseiro para enganar a fome. Vi-o sair da loja tão calado como tinha aguardado a sua vez de ser servido. E aquele homem com rosto e sem nome desceu a rua devagar a refugiar-se no drama da sua pobreza envergonhada. Talvez uns figos colhidos numa qualquer herdade lhe complementem a refeição da dignidade que merece. Naquele início de tarde de um sol escaldante, dois simples euros seriam talvez o preço da sobrevivência.

Kito Pereira

Cidade de Lagos, 20 de Agosto de 2O2O        

2 comentários:

  1. exto magnífico que lhe poderia chamar o texto da pobreza envergonhada!
    Sei dar o devido valor da fome,mas desta vez,não envergonhada, que aconteceu há anos,aquando dum passeio da malta do nosso Bairro de que faziam parte os saudosos Gina e seu marido Jorge Carvalho...
    Tanto andamos e restaurante procuramos que a fome me pediu socorro!
    Mas Deus estava comigo e com o meu estômago!
    Uma churrascaria ao virar da esquina apareceu e nos salvou!
    Consegui dar com o restaurante que os amigos finalmente encontraram...e lá apareci não com uma asa,mas uma boa coxa de frango já quase toda acabando no meu esfomeado estômago!
    Lembras-te Quito dos jaquinzinhos?
    Foi um passeio que não mais esquece e onde tivemos a magnífica companhia da Gina...no seu último passeio!

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  2. Começou a comer o frango logo no balcão de atendimento enquanto procurava o dinheiro para pagar,perante a empregada verdadeiramente espantada com tal situação!
    Só visto...

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