sábado, 24 de abril de 2021

A CULPA NÃO É DAS ESTRELAS - Texto do Professor Antonino Silva

 A culpa não é das estrelas.


No decurso dos dias que perfazem anos, parece que há estrelas que se ajeitam para “nos fazerem a cama”. A expressão “fazer a cama a alguém” não engana quem a lê e a leitura que resta é disfórica, isto é, não agoira coisa boa. 

Na realidade, para uns parece que se abrem autoestradas para o sucesso, enquanto para outros os caminhos são quelhas para vidas tortas. As estrelas são as culpadas! Ou será que não?

Tenho comigo que cada um é quem traça o seu caminho e devemos, por isso, deixar as estrelas em paz; mas também acredito que há coisas que nos acontecem sem sermos a maior causa disso.

 O exemplo maior foi a vida miserável do Bate-Torto, de Escarigo, uma localidade perto de Caria, na estrada que vai de Monte do Bispo para a Meimoa. O Bate-Torto chamava-se Joaquim Gemunde e tinha esta alcunha porque a herdara do seu pai, um jeitoso que fazia as vezes de ferreiro na aldeia. Como não era encartado na profissão, o pai não aprimorava os trabalhos e batia ao deus-dará na safra. Onde se notavam os maiores defeitos era nos ferros de saibrar, e nas picaretas das minas, que, por serem objetos longos, ficavam irremediavelmente tortos nas pontas. Daí o seu nome. Apesar disso, tinha uma mãozinha certeira para tirar da água os metais incandescentes na altura certa, fazendo a têmpera resistente. Via-se, a olho nu, a linha azul seguir a castanha até ao biquinho, sinal de bom aço e de resistência para mais uns dias.

O Joaquim não tinha mais planos do que casar, ter filhos e continuar a profissão do pai – procurando alterar a alcunha, talvez? – e morrer velho. A mãe é que era um bocado esquisita e nenhuma rapariga da aldeia ou das redondezas lhe agradava: umas porque eram umas delambidas; outras porque eram umas ‘zuratas’. Tinha de ser uma moça mais digna, de preferência, de fora, por exemplo, de Belmonte.

Nos meados da década de 60, eis que o Bate-Torto foi arregimentado para a guerra na Guiné e partiu sem compromisso nem namorada. 

Nessa altura havia uma tradição frequente de os militares, para combaterem a solidão, escolherem uma madrinha de guerra, frequentemente ao acaso, com quem se correspondiam por carta ou aerograma. Alguns conseguiam apalavrar esse contrato antes da partida, mas outros partiam sem nada determinado. O Bate-Torto estava neste segundo grupo.

Quando já levava dois meses de comissão, perto de Bissau, foi aos correios e escreveu uma carta inócua onde se apresentava e colocou no destinatário algo tão difuso como “Primeira donzela de olhos negros que encontrar, Belmonte, Portugal”.

O carteiro que fazia Belmonte conhecia, uma por uma, as famílias da vila e sabia, de cor e salteado, os problemas e histórias de cada lar. Quando lhe chegou a carta do Joaquim, lembrou-se da Leonor Sacristã que vivia na rua da Amendoeira. Sabia que a moça tinha os olhos negros, não destoava na aparência e, de óculos, até parecia bonita. Mas o carteiro sabia também que não era donzela e a idade já pulara mais do que deveria. Com 27 anos e não sendo casada, era aquilo que na altura se chamava “encalhada”. Tivera um namoro que ‘cheirara a ferrugem’ – que durara muitos anos –  e que terminara por causa do seu mau génio e do desleixo nas lidas da casa.

Como tinha alguma pena dela, o carteiro acabou por passar por outras “donzelas de olhos negros” e foi direitinho a casa da Leonor entregar a carta. Com essa entrega carimbou a passagem para o entendimento entre ambos. Trocaram fotos de madrinha de guerra, a Leonor passou depressa a apalavrada, depois a namorada e, finalmente, a noiva.

Quando o Joaquim voltou foi conhecê-la em pessoa. A visão da solidão por terras de Bissau filtrou a capacidade de ver quem tinha perante si e manteve o compromisso. Casaram, fizeram boda e foram viver como caseiros nas Quintãs. A pobre senhora não tinha jeito para nada, nem na lida doméstica nem na lavoura. Muito cedo surgiram as desavenças, as ameaças e as agressões de parte a parte e ambos foram sempre infelizes.

Até hoje, o Bate-Torto ainda não perdoou ao carteiro!

Antonino Silva


2 comentários:

  1. Um belo texto. Tenho ideia de ter conhecido o autor na Brotero onde conclui o curso em 1963, mas posso estar enganado.

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  2. Este meu amigo é licenciado em letras pela UC.
    Esteve a dar aulas de Português na UC a alunos do ERASMO
    É Professor do Ensino Secundário

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