quarta-feira, 15 de setembro de 2021

 

                                                                Guiné Bissau

O CAÇADOR …

Victor Baldé dava nas vistas pela sua compleição física de  braços robustos e um tronco musculado numa cabeça de menino. Uns olhos grandes que lhe sobressaiam da tez escura e duas marcas no rosto feitas com um ferro em brasa junto das fontes, davam - lhe o estatuto de confrade da etnia Fula, supostamente a mais arguta das tribos africanas da Guiné.

Um dia apareceu à porta da Escola Regimental de Canjadude. Queria saber ler e escrever. E o furriel miliciano, atirado para a fogueira de Mestre – escola onde tudo era improviso, convidou - o a entrar e sentar – se num banco de madeira. Uma tábua comprida suportada por dois bidons, um em cada extremo da prancha, servia de carteira onde se amontoavam os meninos, os livros coloridos, os lápis e as afiadeiras. Não foi preciso esperar muito tempo para perceber que o Victor Baldé era mais perspicaz que os outros. Rápido aprendeu fazer o seu nome em letra redonda. E de somar 2 + 2 igual a 4.

Por vezes, o Victor desaparecia da tabanca. Era hora de caçar. Por lá andava sozinho, sumindo – se na mata sem deixar rasto. Descalço, de tronco nu, partia de sacola ao ombro, levando consigo uma velha e rudimentar espingarda e uma faca de mato à cintura e pela bolanha andava dois ou três dias. A noite morna africana, servia-lhe de manta de agasalho ao corpo desnudado. Nada que preocupasse a comunidade a sua ausência. Como sempre, voltava a casa trazendo acondicionada em folhas largas de palmeira e envolta em pedaços de sarapilheira, a caça que previamente tinha esquartejado no mato e que transportava à cabeça. Depois, na tabanca e em cima de uma esteira, a carne sobrevoada por moscas era leiloada e desaparecia num ápice, sendo a gazela o petisco mais procurado.

Numa tarde, naquela prática que já lhe vinha dos antepassados, de novo partiu e  por lá andou três dias. E ao quarto dia, voltou. Como era habitual, trazia à cabeça as peças caçadas. Mas numa mão e de rastos preso pela cauda, um pequeno jacaré que tinha abatido nas margens do revolto rio Corubal. Um troféu que exibia com orgulho e que arrastou durante os onze quilómetros que mediavam entre o rio e a tabanca seu porto de abrigo. Grande foi o entusiasmo mesmo na família militar. Todos queriam ver e ser fotografados junto daquele projeto de jacaré. Então, com surpresa ou talvez não, o animal foi esquartejado e vendido aos muitos interessados na iguaria na tabanca. E o Victor, de novo sentado no banco da escola, confessou na sua simplicidade de menino – grande, que o banquete de jacaré tinha sido de arromba.

Kito Pereira    

6 comentários:

  1. Obrigado Quito.
    Mais um texto interessante sobre a tua passagem pelas terras da Guiné, em momentos complicados da guerra colonial.
    Episódios que marcam uma vida inteira!

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  2. Boa noite.
    Um texto de outras paraguens...com bons petiscos.
    Eu pensava que o Quito andava por Lagos,lisboa,Leiria ou mesmo Castelo Branco mas desta vez foi mais longue...já chegou e já nos deliciou com mais este texto.
    Obrigado e boa estadia ai por Coimbra.

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  3. Boa noite Lucinda.
    O Quito agora divide o tempo por Coimbra, Lagos e Leiria.
    Agora está por cá, fomos almoçar juntos no domingo mais o Alfredo e a Daisy, e deu para meter este texto!
    Beijinho

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    1. Isso eu queria pra minha vida: estar com essa malta linda.

      Chama a Mamãe!

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  4. Amei o Victor (aliás, um filho meu se chama Victor!)
    Quanto ao jacaré, já devo ter comido a carne, pensando ser a do Pirarucu.
    Aqui em Manaus têm restaurantes que servem a carne do jacaré. Conscientemente, eu não consumo (a não ser que me enganem, e muito bem!).

    Ufa! À medida que lia, meu pensamento - veloz - já imaginava o Victor não ter retornado às aulas, receio daquele dia ter sido o "dia da caça".
    Esse Victor deve ter uma sabedoria ímpar, se ainda vivo. Se não, privilegiados aqueles que tiveram convivência com ele.

    Como estás, Kito, tu e tua São?
    Beijos em todos, com todo respeito, claro!

    Chama a Mamãe!

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    1. Estamos bem, amiga. Sempre com interesse com as notícias do Brasil e muito em particular de Manaus onde esperamos que o maldito vírus não provoque mais vitimas.
      GRANDE ABRAÇO e beijos aos netos ...

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