Pedi desculpa ao Capela ... ao Bentes ...
O meu primo António é do Benfica. Tão do Benfica tão do
Benfica, que quando foram ao registo e mais tarde lhe inclinaram a cabeça na Pia
Batismal, já se chamava António Vermelho. Ficou pois Vermelho de nome, de
coração, e de paixão.
Ano após ano, cresceu debaixo das asas da águia, até que se
fez homem e partiu para o Algarve a esgravatar pela vida. Sim, que o Algarve
não é só turismo.
Um dia, tropeçou nuns olhos grandes algarvios e enamorou-se.
Sempre de olho no pai da rapariga, que ameaçava correr os mocetões que se
abeiravam da janela dela, a tiros de caçadeira. Ainda por cima, o homem era do
Sporting.
Mas o namoro vingou e deu em casamento. E o Vermelho de
batismo, também António de seu nome, assentou arraiais no fundo de Portugal.
Foi num Domingo. Enquanto lá para os lados de Sagres,
comíamos a quatro vozes, um robalo escalado do tamanho dos submarinos do outro,
o meu primo António estava inquieto.
A sua cabeça já estava lá para os lados de Faro, onde águias
e leões mediam forças. Confessou-me que ia ao jogo, com mais dois comparsas
algarvios amigos dele e que eram da mesma religião.
Fiquei descansado por ele não me convidar para o prélio,
apesar de saber que o recinto estava esgotado. Mais contente fiquei, quando ele
me segredou o preço dos bilhetes na candonga, a roçar o obsceno.
Depois, no carro dele, regressámos à base. Eu fui para casa,
disposto a ver o jogo pela televisão. Ele, partiu com os outros para a grande
batalha, aos solavancos e aos tropeções pela Nacional 125, com o coração aos
saltos e os radares da polícia atrás dos muros e em cada esquina.
Após de um banho retemperador, sentei-me a ver o mar e a
desfolhar Raul Brandão. Foi então que, a páginas 2O3, li:
“ Lagos, o deslumbramento da baía, e sigo logo de carrinha
pela estrada branca, entre amendoeiras e figueiras derreadas. Andam mulheres
com grandes chapeletas na cabeça, a apanhar a amêndoa varejada. Às figueiras
chega-se à mão. Há algumas que deitam braços, mergulham-nos na terra, criam
raízes e tornam a puxar outra figueira. Há-as aninhadas, com um metro de altura
e uma roda enorme. Há-as muito velhas, retorcidas, com ramos em novelo. Mas
cruzo a estrada da Luz, e logo, de Almadena para diante, a terra muda de
aspecto. Estranho Algarve. Deixa de ser risonho e torna-se rasteiro e
pedregoso. Inquieta-me …”
Inquieto estava eu. Tinha uma batalha na consciência. Pois se
o meu familiar por afinidade foi sempre um amigo leal e do peito, se em casa dele, durante anos a fio, eu tinha
metido no bucho toneladas de carapaus e de sardinhas, tudo regado a tinto e a
bagaço do rijo em farras gloriosas, qual a razão de eu não tomar partido pelo
seu tão amado clube, em vez de ver o jogo impávido e sereno? Não, eu tinha que
tomar uma atitude. Era imperativo! E tomei.
Fui à cozinha, chupei uma pastilha para a azia, lancei os
braços ao ar numa prece ao Capela, ao Bentes, ao Ernesto, ao Gervásio e a todos
os que já lá estão, pedindo desculpa por aquela pequena infidelidade
momentânea, e vesti de alma e coração, a camisola da águia.
Vi o jogo
num reboliço e gritei para o Talisca … chuta a bola pá
!!!
Mas o Talisca não chutou. Ou chutou torto. Logo ali percebi,
que aquela não era a minha noite encarnada. Como um azar nunca vem só, a bola -
essa traidora - foi contente e saltitante entrar na baliza do Glorioso. Vi logo
que o caso era grave, pois o gatuno do árbitro disse que o golo era a sério,
depois dos verdes já terem marcado um na primeira parte que não contou, era só
a malta a reinar, como dizem lá por Lisboa.
Exausto, recusei-me a ver os verdes a erguer a taça. Fui ao
frigorifico e tirei de lá uma pequena costela de porco panada. E foi irritado a
mastigar a talisca , que me lembrei do outro Talisca. O tal que joga no Benfica,
que chuta torto ou não chuta nada.
Quito Pereira