domingo, 10 de setembro de 2017

FOLHAS SOLTAS ...





Acordei embalado por um dia doce. Hoje – vinte e oito de Janeiro – há um sol  que rasga a penumbra da sala, trespassando as frestas da persiana mal corrida. Um rendilhado de luminosidade, projeta-se e espalha-se pela parede branca, como peças de um jogo de xadrez, alinhadas com critério no início da peleja. Depois, como todas as manhãs, parti para a vida.

Dia estranho, coberto de sol, neste inverno que hoje fez uma trégua com a natureza. A estrada está limpa, lavada das chuvas dos últimos dias. Um ar fresco penetra-me pelas narinas e a Serra da Estrela, de alvo véu nevado a esconder a tez morena, está coberta de silêncio.

Entre este hino mudo do glorificar da vida, da terra castanha confortada de água, da esteva atrevida a querer renascer antes do tempo, das hortas verdes de esperança, dos couvais resplandecentes a derramarem-se para a terra pelo peso da folhagem e o palco agreste de vidas perdidas, vai apenas um sopro de desesperança.

Ele - o João C. - caminha pela berma da estrada como se fosse um autómato. Anda em passo ligeiro, carregando a sua pequena estatura e uma cara cuja referência são uns largos e velhos óculos, de lentes que parecem o fundo de uma garrafa, pela espessura do vidro graduado.

Senta-se à lareira do café escuro e olha a televisão sem interesse. Tem dificuldade de visão, mas lê o jornal diário, que encosta ao nariz para decifrar as notícias. A meio da tarde, bebe uma cerveja, a única despesa que faz. Os proventos são de miséria, de um desempregado de longa duração. Longe vão os tempos, em que o João atendia a clientela da melhor loja de ferragens da região, um mundo de mercadoria variada e que fechou portas para surpresa da cidade, há mais de uma década.

Então, quase noite, regressa ao lar, onde vive só. Passa por mim e cumprimenta-me com a educação que sempre lhe reconheci, naquele seu jeito humilde. Fico a olha-lo, até desaparecer na curva do caminho. Depois desço ao interior das minhas inquietações, a refletir no percurso de vida daquele pequeno homem, que já conheço há muitos anos. Um viver sem sentido, em que cada dia é um dia. Uma vida sem diário. Ou de um diário triste, feito apenas de folhas soltas ao vento …
Quito Pereira      

3 comentários:

  1. Só agora por aqui vim.
    Boa surpresa esta postagem...pois vinha a pensar o que teria por aqui para postar.
    Já não pensei, pensaste por mim!
    Belo texto que por momentos te transportou a um passado não muito distante,pois onde se passou uma parte da vida, memórias destas deves ter mais, muitas mais para contar!
    Um abraço

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  2. Em Coimbra, tens mais amigos (velhos amigos), mais família e até mais calor, mas jamais terás a "Serra da Estrela, de alvo véu nevado a esconder a tez morena, está coberta de silêncio"... Nem a inesgotável fontes de inspiração daquele povo que bem conhecias e a quem davas um ombro amigo para, pacientemente, ouvires as confidências das amarguras da vida.

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  3. A inspiração do texto de hoje leva-me a à pressupor que te apeteceu recuar no tempo e aos afetos.
    Há circunstâncias que motivam à reflexão...
    Bela prosa Quito!

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