sábado, 28 de julho de 2018

CRÓNICA DO SUL ...






Derramado sobre a cadeira do meu conforto, olho o jornal. Apenas olho, porque as notícias cansam de repetitivas. Atiro com o diário para a cadeira do lado e observo os barcos aparcados na Marina. São barcos grandes e pequenos para todos os gostos e bolsas. Mas há os outros. Os que são o sustento de muita gente ligada ao turismo. São coloridos e festivos, artisticamente engalanados para atrair veraneantes em passeio pelas grutas ou olhando ao largo o prazer de conviver com golfinhos irrequietos. Ou ainda aqueles que gostam da pesca de cana das espécies graúdas de alto mar, de contornos especializados. Os mais simples é vê-los chegar e partir, de coletes de cor amarela ao pescoço para prevenir qualquer incidente no oceano. Vão e vêm como as marés. Chegam de boné na cabeça e a pele vermelha congestionada e abrasada deste sol algarvio. Estou absorto neste desfile de gente tão diversa portuguesa e estrangeira, quando uma menina de braço tatuado se acerca de mim. Pergunta-me gentilmente o que pretendo beber. Escolho um sumo da boa laranja algarvia. A cerveja fica para depois, quando lhe pedir o almoço. É ali, com a minha consorte, que por vezes atracamos também a nossa nau de afetos com a cidade - marinheira. Olhar aquela parafernália de mastros emaranhados e de bandeiras ao vento, e ver ao longe mas também ali tão perto a cidade histórica, que é nosso refúgio em diferentes épocas do ano.


Almoçamos ao ritmo do veleiro que parte. Vai lento, talvez a meditar no esgrimir de argumentos com as ondas e a espuma alva destes dias de verão. Enquanto a minha companheira vai folheando uma revista, percebo que ela não tem pressa. Como já são muitos anos de tarimba, se não me acautelo vou passar a tarde a olhar para montras num entrar e sair de lojas do meu enfado. Tenho então que tomar uma decisão e tomo – atiro com as chaves do carro para cima da mesa e exclamo numa amabilidade imperativa: encontramo-nos em casa!


Parto. Percorro a calçada deambulando entre tendas de roupa e dos mais diversos artigos. No largo que é sala de visitas, cumprimento o Sebastião de Cutileiro e penetro numa dependência bancária, em busca duma máquina automática e dos euros do meu contentamento. Vã e rápida ilusão. Os vikings que assolaram a cidade raparam tudo. Digo entre dentes algo de vernáculo de acordo como meu estado de espírito e volto para o sol castigador que inunda o largo. Ponho-me a meditar naqueles dois quilómetros sempre a subir até chegar a casa sob um sol a pino e olho a praça de táxis da minha salvação. Nova ilusão. Os vikings tinham tomado os táxis todos de assalto e já só me resta esperar. Enquanto aguardo sentado num pequeno banco de jardim, olho o carrossel inerte e sem sorrisos de criança. Apenas os tigres, os cavalos e as girafas se riem, a aguardar os seus pequenos clientes de um mundo de ilusão. Ao lado, africanos tentam vender todo o tipo de mercadoria espalhada em mantas pelo chão. São vestidos femininos, estatuetas em madeira, carteiras de senhora, relógios e braceletes de aspeto apelativo que ostentam nos dedos grandes e esguios, naquela improvisada ourivesaria de rua.  As suas túnicas coloridas, largas e compridas, lembram-me os mistérios de África. Nos seus olhos grandes e expressivos, encontro a paciência e a sabedoria de quem sabe esperar. Porém, é uma bizarra figura que me atrai a atenção. É um homem magro, de aspeto mal cuidado e rosto envelhecido. De estranho, é que dorme profundamente sentado em cima do selim de um cangalho de bicicleta, os pés nos pedais e braços cruzados sobre o peito. Para remediar aquele equilíbrio instável, tem o ombro esquerdo apoiado no tronco de uma árvore. Fico a olhar aquele inusitado quadro, até que acontece o provável: a bicicleta resvala e arrasta consigo o homem que desamparado bate com violência com a cabeça no chão. Grande alarido entre os africanos que, antes de mim, já o tentam socorrer numa roda de solidariedade. Combalido, o pobre homem agarra a cabeça com as mãos num esgar de dor. Lentamente vai recuperando até que, para surpresa minha, volta a montar na bicicleta e, de olhar vazio, fica a ver escoar-se o Tempo e a Vida. Dos turistas que observavam aquele momento, ninguém se mexeu. De todos, lembro aquele homem gordo de bochechas afogueadas, que se lambuzava com um gelado que com o calor lhe escorria pela camisola estampada com um musculado e enérgico Super Homem - fraco Super Homem.


Entro no táxi e digo ao motorista onde quero ficar. Indico - lhe com precisão o local e à guisa de conversa, vou dizendo que há muitos anos conheço a cidade. A conversa não é inocente. Quero que ele entenda que eu não sou um turista acidental a deambular pela urbe em passeio forçado ao sabor do rodar do taxímetro e dos euros. E assim, pelo caminho mais curto, cheguei ao meu porto de abrigo.


Agora, a coberto da canícula e de janela da varanda aberta de par em par vejo o  mar e o céu azul, onde as gaivotas voam em círculo no seu jeito caraterístico de comunicar entre elas em tempo de acasalamento, enquanto vão riscando o céu em coreografias sublimes numa dança flutuante ao sabor de um Tempo e de um Vento que não se esgota na sua rota intemporal.  


Logo, mais logo, quando a noite lacobrigense chegar, as ruas medievais enchem-se de forasteiros das mais diversas origens, perante a indiferença de um Infante vestido de bronze e sentado num pedestal erguido em pedra alva, a olhar o mar que lhe traçou o Destino e a História. É o seu mar. É o meu mar.

Q.P.         

6 comentários:

  1. Descreves tão bem o teu sentir que te acompanhei neste deambular por Lagos. Os teus escritos, mesmo em férias, continuam ...sem palavras.

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  2. O mais logo é agorinha...
    Eu bem achava que o regresso em Setembro não seria para levar a sério...
    Lagos sim, mas tanto tempo seguido fora do Bairro, não é situação que se encaixe no teu ADN...
    Nós os resistentes desta espécie de blogue agradece as "saudades"...
    E assim e de surpresa aparece a "Crónica do Sul".
    Texto que deu para fazeres o filme dos dias que irias passar junto ao teu mar
    Mar para ver de longe, pois ao perto mesmo juntinho à água, obriga a pôr o pé na areia...
    Acredito que na primeira semana ainda conseguiste, mesmo de fugida, pois o Miguelito a isso te obrigou.
    Por agora entras(entramos) no ritmo bairradino: bica, dois dedos de conversa...e a vida continua!

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  3. Do Choupal até Lagos.

    Abre-se o texto ainda admirado com a rapidez da volta e a mistura da tua estória com a história do passado, por deixares o Sebastião no mesmo sítio. Lê-se e relê-se à espera que ao ver tantas côres que saltam aos olhos, após um calmante sumo de laranja seja à próxima que se veja a mesa partida com com as chaves do carro para evitar de ir ver montras, que se fôsse em francês até ias pois elas chamam-lhe "lèche-vitrine" para nos enganarem. As mulheres mesmo sem armaduras como o Sebatiãozinho, têm muita força.
    Só que mesmo assim o autor nada conseguiu porque os vikings até os taxis metiam nos sovacos. Psicológicamente obrigas o taxeiro à ditadura democrática do preço.
    Como excelente propagandista de uma das lindas terras que abraçaste, agora já lhes chamas forateiros e jamais vikings, pois o Infante está bem atento ao que pensa ser o mar que lhe traçou o Destino e a História. Esqueceu-se que mais tarde apareceria um D. Quito senhor do seu "próprio mar".
    Um abraço com votos de excelente retorno.

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  4. És um grande "artista"! Deixaste-lhe as chaves do carro, mas não lhe deixaste dinheiro para as compras!... Não sei para que é que precisavas levantar dinheiro, se ias para casa ver o mar! Ainda bem que os turistas esvaziaram a caixa multibanco, só poupaste!... Ó Quito, o Algarve no verão é como o Porto no S. João e Coimbra na Queima das Fitas, é de fugir para o mais longe possível ou ainda te sujeitas a que te batam na traseira do carro!...
    Ainda bem que as "férias" já acabaram para vos ter ao pé de nós...
    Bom texto, abraço.

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  5. Homens! rssss
    Enfadam-se, de imediato, ao acompanharem as esposas/namoradas a algum programa que não seja futebol e conversa em uma rodada de cerveja!
    Querem ver homem ficar chateado é convidá-lo a fazer programa de mulher, ou seja, ir às compras. rsss Mulheres são mesmo terríveis. Afinal, sou uma delas! A gente sequer percebe a hora passar quando, por exemplo, estamos em lojas de um shopping.
    Achas mesmo que a "companheira" ficou sem dinheiro, Alfredo? Não! No mínimo, ficou o cartão de crédito, sem limites.
    Valeu o conto, como sempre tem valido.

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