sábado, 19 de dezembro de 2020

NATAL 2020 - DÁDIVA DE NATAL PARA QUEM GOSTA DE LER - DE ANTONINO SILVA

 

Não é por isso que a serra se chama Serra da Lapa, mas podia ser.

É a minha dádiva de Natal para quem gosta de ler.

«Sentia que as pernas lhe falhavam e os pés, julgava, tinham ficado para trás, muito antes da subida depois de Vila da Ponte. Pelo menos, tinha sido por ali que deixara de os sentir nas botas, tal era o frio e a neve que cobria a serra.

As memórias recentes assaltavam-no como um pesadelo de olhos abertos. Nunca pensara, apesar de soldado, que pudesse haver tanta miséria humana quando do outro lado estão homens de outra cor. A sua história militar era um papel químico de que se perdera o original. Era a sombra de um soldado que, alguma vez, noutro tempo e noutro lugar, tinha sentido orgulho de vestir uma farda e de empunhar a espingarda. Pertencia à brigada que estava sediada no Solar dos Gouveia, o quartel da capitania-mor de ordenanças, em Fonte Arcada, na altura sede de município e hoje fazendo parte do concelho de Sernancelhe. O solar dos Gouveia exibe ainda um largo pátio de quinhentos metros quadrados onde, na altura, se fazia a parada militar e fuzilavam os prisioneiros de guerra. Como o destacamento militar era uma brigada, este solar é hoje também conhecido como o Solar dos Brigadeiros.

Este aquartelamento era de enorme importância no contexto da altura. Dali partiam as brigadas para as escaramuças contra os franceses e outros jacobinos e faziam várias batidas às dezenas de povoações do vale do Távora, todas as que acendessem os fogos de atalaia, a avisar que tinham avistado tropas gaulesas ou espanholas a dirigirem-se para Lamego. Pela serra de Leomil, sabia-se, a progressão dos invasores não era de todo possível, porque as peças de artilharia necessitavam de piso firme que não deixasse atolar na lama as rodas cortantes e permitisse a uma junta de mulas puxar aquela massa de ferro. Por outro lado, em Fonte Arcada há uma torre do relógio no ponto mais alto, antiga torre medieval de vigia. Ninguém passaria pela estrada que vinha de Sernancelhe sem que fosse avistado do alto.

Uma segunda função do solar era a zona mais negra de toda a imoralidade da guerra: a prisão desumana e a antecâmara da morte. Era essa coisa difusa, não definível, que provocava os vómitos morais àquele desertor, João Boto de seu nome. Os dias passavam ironicamente feéricos, como se se sucedessem, suspensos, noutra dimensão. Enquanto soldado, nunca tinha vacilado e carregava e descarregava a escopeta como quem jogava à bisca de dois: ou ganhas tu ou ganho eu. Sabia que, se não matasse morreria, e isso nunca o atormentou.

Porém, quando foi destacado para guarda da prisão e para o pelotão de fuzilamento, algo nele de quebrou. Sentiu que a coluna da humanidade, que lhe sustentava o ser como soldado, tinha sido decepada por baixo, tão baixo quanto um homem pode ser vil. Viu como é possível levar à ignomínia a condição de homens, tratados abaixo da condição de um verme, até que os olhos não tivessem olhar nem a alma nenhuma vontade de ser. Em surdina, ouvia uma e outra vez “tuêmuá mê siê! tuêmuá mê siê!”. Eram pequenos homens, ainda imberbes, a quem as práticas de interrogatório já desfigurara os rostos e cujos ossos da mão tinham sido multiplicados. Num ou noutro, uma perna ou um braço faziam já um arco sinistro. Quando podia, chegava-lhes aos lábios água que guardava secretamente e, se o acaso dava, deixava-lhes ficar uma côdea de pão. E à noite nem sabia bem se ouvia ou se sonhava que ouvia “tuêmuá! tuêmuá!”. 

Para maior desarranjo da consciência, não percebia como era possível que aparecesse o sorriso no rosto daqueles meninos homens amarrados aos postes de fuzilamento na altura em que vários canos vomitavam o chumbo que lhes marcava a libertação da dor. Isso intrigava-o e agudizava a sua angústia. João Boto não conseguia e nem queria entender isso, pois sentia que tinha perdido a centelha de humanidade que um dia já tivera, num outro tempo em que era um filho de agricultor, na aldeia de Freixinho.

A jaculatória “tuêmuá” não o largava e, na véspera de natal, dia em que teve licença de visita a casa, preferiu ir a pé a Sernancelhe e falar com o pároco, que ele sabia inteligente como poucos e tinha estudos. De certeza que o poderia ajudar a decifrar o que queriam dizer aquelas palavras. Chegado lá, o padre Matias, que andava a preparar tudo para a Missa do Galo, ouviu-o em confissão e ele falou-lhe disso, das palavras indecifráveis. Então, o padre explicou-lhe que aqueles homens suplicavam: “Tuez moi, monsieur!”, ou seja, “mate-me, meu senhor”.

João Boto chorou, então, choraram ambos, mas ele chorou como um órfão que acabara de perder a mãe. E, sim, ele sentia que era órfão, um deserdado da dignidade. Decidiu não voltar ao quartel. Preferia ser desertor e fuzilado a ser causa de tanta miséria na existência dos outros. Compreendeu porque é que a felicidade assaltava os olhos dos homens presos ao poste e as palavras não eram sonhos, mas súplicas. 

Passando Vila da Ponte, meteu-se pela atual serra da Lapa acima, cheia de neve e ouvindo o uivo dos lobos que, por perto, farejavam o sangue quente. Acelerou o passo, mas as forças começavam a fraquejar. Sabia que só dariam pela sua ausência na tarde do dia de Natal, altura em que deveria regressar à brigada. Por isso, decidiu procurar um abrigo debaixo de uma penedia qualquer para passar a noite. 

Já com a luz da lua que derramava o seu leite pela alva neve, avistou uma elevação com uma lapa larga, que lhe serviria de abrigo. Puxou da pederneira para atiçar uma lucerna de azeite que o acompanhava sempre em campanha e iluminou o espaço. Viu, ao fundo, algo que devolvia o ténue brilho da chama… e foi ver. 

Era uma imagem de uma Senhora com o Menino ao colo, que alguém escondera ali, noutros tempos e noutras perseguições.  Pegou nela com as mãos de pecador e colocou-a sobre uma pedra. Acomodou-se e chorou de novo. Pediu perdão e tentou lavar a alma. Parecia que a imagem lhe sorria e ele propôs-lhe que, naquela noite, naquela noite só, se fizessem companhia e ele pudesse celebrar, assim, todos os Natais que perdera no tempo da guerra. A Senhora disse-lhe que sim, que acoitava todos os corações aflitos e seria, mais uma vez, a fonte da redenção.

João Boto continuou ajoelhado até adormecer e, na tarde de Natal, quando os companheiros de brigada o procuraram por toda a parte, seguindo-lhe o rasto na neve, alguém se deparou com uma lapa na serra, com um presépio onde estava Maria com o Menino ao colo e José, estranhamente, vestido de soldado.»

Natal de 2020.

6 comentários:

  1. É um prazer ler textos do Prof. Antonino Silva

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  2. Temos consagrados autores. Os que para além do seu talento, têm uma máquina publicitária que lhes promove os livros. E depois há os outros. Os que escrevem muito acima da média e em nada devem a nomes sonantes. Dos que escrevem pelo gosto da escrita apenas e só. E nesse grupo estreito de escritores está o Professor Antonino Silva. Brilhante !

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  3. Tão bom que dói!
    Antonino, já tens textos suficientes para um livro. Quando o temos?

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  4. E na Ponte ainda não havia a barragem de Vilar. Logo acima a Lapa onde nascem o Paiva e o Vouga que correm para Barrelas e Louzadela. Só cá falta quem de lá era, o Aquilino Ribeiro que tinha hoje tanta coisa para dizer..

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  5. Obrigado pela divulgação e pelos cumprimentos. E sim, Paulo, já tenho mais que suficientes. Tenho de definir isso como projeto.
    Boas festas.

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