sexta-feira, 7 de agosto de 2015

RAUL BRANDÃO E O RELÓGIO CHINÊS ...



                                        

 (foto Net)

De Lagos a Portimão, é um tiro de carabina. Seria. Porque nesta época de Agosto, o Tempo corre ao ritmo indolente do calor que se faz sentir. 

Para mais, a cidade portimonense é sempre uma espécie de estaleiro, com obras em rotundas e avenidas. Afunila-se o trânsito e alarga-se a paciência daqueles que pretendem chegar atempadamente aos seus destinos.

Também eu, ao volante do meu carro, vou rezando uma ladainha. Um assunto a resolver leva-me à cidade que tem na Praia da Rocha, a sua imagem de marca.

Mais curva e contra – curva, mais rotunda menos rotunda, vejo-me engolido por uma boca estreita e escura. Lá dentro, por entre luzes mortiças, vou serpenteando por vielas de mau acesso, até que consigo, finalmente, largar o carro. Estou no parque de estacionamento subterrâneo de um supermercado.

Uma escada - rolante que se sobe e, como que por magia, deparo-me com um estrondo de gente e de luz, naquela ribalta de uma catedral de consumo.

A minha companheira de viagem, rápido desapareceu numa loja, naquela curiosidade tão feminina de procurar e encontrar nas prateleiras apelativas, o artigo apetecido. Sei, por experiência de anos, que vou ter muito que esperar. E ali, naquele largo junto ao amplo estabelecimento, descubro umas cadeiras de verga confortáveis. Uma espécie de sala de estar.

Já sentado, vou observando os turistas portugueses e estrangeiros, carregados de embrulhos. Alguns, com os filhos atrás, que vão protestando pelo gelado cobiçado. Mas o que me chama a atenção é uma banca corrida com livros, ali a escassos metros de mim. Numa ponta da mesa, uma mulher pequena de cara mirrada, está sentada num banco de madeira. Tem o cabelo mal alinhado e um olhar vazio, como que alheia a tudo o que se passa à sua volta. 

Por muito tempo, fui observando toda a enxurrada de gente que passava. Porém, ninguém se abeirava dela. Embrenhado nos meus pensamentos, fui-me questionando se aquela pobre criatura, teria alguma magra percentagem nas obras vendidas. 

Com todo o tempo do mundo, levantei-me devagar e abeirei-me daquela montra. Tive então a oportunidade de ver, que os livros estavam arrumados por temas e com critério. 

Aqui e ali, fui olhando este e aquele exemplar, desfolhando páginas ao acaso. Até que me apercebi de um pequeno grupo de livros de autores portugueses. Lá estava Eça. Lá estava Ramalho. Lá estava Redol. Também Raul Brandão. E de Brandão, suscitou-me a atenção a obra “Os Pescadores”.

Por minutos, entretive-me a desfolhar páginas e a ler diálogos. Depois, fechei o livro e dirigindo-me à mulher, dei-lhe os cinco euros que era o valor a pagar pelo exemplar. Agradeceu-me com um sorriso dorido numa cara doente. Depois parti, agora que a minha companheira de jornada me convidava ao regresso.

Em Lagos, de novo me vi metido num subterrâneo para automóveis. Mais gente que se cruzava na penumbra, até que ao chegar à superfície, um sol impiedoso nos queimava a pele, como um assador de sardinhas. Por ruas estreitas nos embrenhámos, na procura da sombra acolhedora. 

Eu levava comigo uma missão: comprar um relógio numa loja chinesa, já que o meu ficara sem pilha e ninguém tinha chave própria para abrir o seu ventre, apesar de todas as tentativas que fiz em estabelecimentos da cidade. Adquiri então por seis euros, um relógio asiático. 

O seu aspeto é pouco apelativo e a qualidade mais que duvidosa. Mas para mais três ou quatro semanas de estadia no barlavento algarvio, por certo que a máquina do Tempo cumprirá a sua função de me dar horas aproximadas. Por fim, terá o seu destino mais que provável de acabar os seus dias no fundo de uma gaveta.

Regressei então à freguesia de Santa Maria e, sentado no alto da varanda, fui olhando o mar.

Depois, desconfiado, olhei o relógio amarrado ao meu pulso esquerdo. Na mão direita, eu observava a capa do livro de Raúl Brandão. Foi então que, em função dos seis euros que dei ao comerciante chinês pela mercadoria de tão fraco aspeto, e dos cinco euros que a vendedora de Portimão me pediu pelo livro do escritor, dei comigo a resumir um pensamento cru e inquietante das sociedades ditas modernas:

- Vale mais um relógio chinês de má qualidade, que a prosa Realista em pinceladas de talento, do nosso compatriota nortenho Raul Germano Brandão.
Quito Pereira                

8 comentários:

  1. Para não falar que o relógio vai durar uma semana, um mês no máximo e o livro ira durar anos sem conta!

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    1. É uma verdade, Alfredo. Para ti e Daisy, desejo um bom fim de semana ...

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  2. Novidade, ou talvez não! Tu e a tua companheira são cá uns curiosos!!! Resolvem deixar Lagos e meter-se na barafunda de Portimão(obras…) contigo a vociferar contra as rotundas que Portimão também tem direito de ter. Se outras cidades, vilas e aldeias as têm…
    Pelo que leio a tua companheira como não podia deixar de ser lá se asilou num desses estabelecimentos que não permitem a saída sem pelo menos duas ou três compras!!!
    Mas foi esse intertimento consumista que te deu oportunidade de escrever este texto!
    Relógio sem pilha, sem ninguém capaz de abrir a caixa para o alimentar com um concentrado alcalino!
    Sorte a tua!
    Achinesaste teu pulso com uma máquina que vai dando horas baratas..até que vai jazer numa gaveta lá para a Condessa do Ameal…tendo tu a esperança que o Relojoeiro da Rua de Moçambique, senhor Sampaio tenha a ferramente necessária para dar novamente vida ao teu ROLEX!!!
    O teu lamento é mesmo sério!A compra de um” best seler” de Raúl Brandão por menos 1 euro que a maquineta que dá algumas horas em chinês…
    Agora minha curiosidade: já o Gonçalo te devolveu a pen?
    E também o Miguelito?
    Dá recomendações minhas à tua companheira!

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    1. Sem NETO e com NET. Vodafone que só recarreguei em Portimão, um dos motivos que me levou lá. Mas a notícia mais espantosa, é que o asiático ainda trabalha e até dá horas certas. Se calhar ofendeu-se com o texto e quer provar-me que é um Rolex disfarçado ...
      Bom fim de semana ...

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  3. Desta curta viagem que, com curvas e contracurvas é um tiro de carabina, deixa-nos o Quito o seu relato.
    Apetecia-me abrir um concurso, com esta pergunta: "Qual o momento mais marcante desta Viagem do Quito?". Claro que não o farei porque receio bem que ficasse deserto de concorrentes, que as pessoas não gostam destes passatempos. Mas eu gosto, sem deixar de per pessoa...
    Para já, importaria definir o que é o "momento mais marcante". Sim, porque o texto tem vários momentos "fortes", entre os quais se salienta o valor relativo entre um relógio chinês e um clássico da literatura portuguesa, momento esse que é a escolha do autor.
    Mas tenho o meu direito de leitor, de escolher o meu próprio momento. Sem dúvida, o momento da observação do cabelo desalinhado e do olhar vazio da vendedora de livros usados, a interrogação da magra percentagem a que teria direito ou não, é o ponto forte que escolho.
    Daqui ressalta o Humanismo, que é o ponto forte do autor.
    Boas férias, Quito e São.

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  4. Amigo Viana
    Obrigado pelo comentário, mas sobretudo pela reflexão. Escolheste bem aquilo que te pareceu ser o "momento marcante" do texto e que coincide com o meu. Nada que me espante, pois conheço bem a tua matriz de Homem virado para os problemas sociais. Mas já agora também te digo que o preço do relógio e do livro me fez pensar noutra realidade.
    Por cá estamos bem, libertos da pressão de quem tinha uma porta aberta. Estas serão de facto, as primeira férias descontraídas, embora todos nós tenhamos os nossos problemas. Mas tem sido realmente diferente.
    Um abraço para ti, Olga, netitos e familia ...

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  5. O Quito compra todos os anos um novo relógio algarvio, ou chinês...
    Vai lendo o livro e vendo as horas desfilando, assim se complementam as aquisições, cada qual com sua função.
    Boas férias ao casal.

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    1. Tens razão, Celeste. Este já é o terceiro. Desejo-vos um domingo e um bom almoço com a tertúlia do Samambaia.
      Abraços

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