quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O "MÃOZINHAS" ...





 Aquele odioso oportunismo ...

Já não sei precisar o dia, em que entrei no Convento de S. Francisco aos tropeções. Levava comigo uma mala e um dia de viagem. Lembro apenas que era maio, e ainda tenho nos ouvidos, o silvo agudo do comboio a partir da estação de Estremoz. Pela velha porta do convento entrei, para logo voltar a sair, à procura de um quarto que me desse guarida.

No dia seguinte, com a alma amarrotada, de novo me apresentei ao sargento, travestido de cabo miliciano. O convento de frades, lugar de culto e de meditação, era agora um regimento de cavalaria, com tanques estacionados na parada e alguns cavalos de olhar doce, que me fitavam das suas “boxes”.

O quartel era sombrio, de paredes frias e escuras e nem o refeitório me fazia abrir o apetite. Os pratos e os talheres de lata, resultavam numa sinfonia macabra quando, à mesa, nos juntávamos a sorver aquele líquido com couves a boiar, que fazia as vezes de sopa. Para cúmulo, não gostávamos do “Mãozinhas”.

O homem, mais velho que nós, era cabo de profissão, fazia da tropa o seu sustento e tinha uns trejeitos pouco condizentes com a crueza da guerra, o que nos punha a todos a coçar na barba. Diziam que era homossexual, o que nunca foi provado, para não pronunciar aqui uma linguagem mais colorida, sobretudo pelos magalas que atravessavam a Ponte de Dom Luís no Porto rumo a sul, neste caso ao Alentejo. 

Os soldados encaravam a situação como uma espécie de sarna, e olhavam para o “Mãozinhas” desconfiados do seu bambolear de traseiro. Porém, nos fins de semana, quando todos estavam desejosos de regressar a casa, a escala de serviço ditava as suas leis. Aquela maldita ordem, que obrigava alguns a ficar no Regimento. A não ser que houvesse alguém, que trocasse de escala connosco.


E era aí que entrava em ação, o “Mãozinhas”. O militar, natural de Estremoz, não tinha família e vivia no quartel. Era o camarada de armas ideal, para nos dar a carta de alforria. E dava. A troco de dinheiro, fazia o serviço por nós, o que nos deixava furibundos e a ranger os dentes, vergados ao seu odioso oportunismo.

Contrariados, lá lhe entregávamos nos dedos finos como garfos, as notas requisitadas, que logo desapareciam no bolso escuro e cavernoso da farda do tarata. E por isso lhe chamavam “Mãozinhas”.

Várias vezes vim a Coimbra graças a ele. Tenho que lhe estar agradecido. Julgo até, que o rótulo que lhe colocaram na testa, era vingança da soldadesca, pelo dinheiro que o lateiro lhes esmifrava das algibeiras, nos sábados e domingos. Na memória, ainda tenho as confidências da Amélia, numa roda de amigos e amigas, que sempre acontece quando ancoramos numa qualquer cidade.

Dizia a alentejana que,” o Mãozinhas era danado para as saias e que um dia tinha sido corrido a tiros de caçadeira de uma casa lá para os lados do Castelo, com a boina a descair para a nuca, por força da velocidade imprimida na fuga rua abaixo, a dar corda nas grossas botas de magala, a correr à frente de um pai muito cioso da respeitabilidade da filha” …
Quito Pereira            

9 comentários:

  1. A Amélia lá sabia que o Mãozinhas não era panel... homossexual.

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  2. Uma história que retrata bem o que a maioria dos que foram militares passaram nos quarteis.
    Cheguei a fazer trocas...mas decentes!Nada de dinheiros, principalmente aqui em Coimbra no RAL2
    Mas sei que também faziam a dinheiro.
    Aqui em Coimbra tive uma vida de tropa sem sobressaltos, o mesmo não acontecendo em Vendas Nova.
    A nossa caserna ficou algumas vezes de castigo"sem fim de semana" e tudo por causa daquela malta que vinha do norte!!!.
    Ainda me vi apertado por não denunciar o camarada ao meu lado que mandou uma boca à ronda, já no silêmcio...
    Posso dizer que da tropa-para além do tempo mal empregue que lá passei, não tenho recordações que mereçam ser contadas. Passei o mais despercebido possivel!

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  3. Há corruptores e corrompidos até nos bastidores do Vaticano!
    Só mudam os objetivos.
    rs

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  4. O Quito traz-nos mais uma recordação da sua vida militar que nos encanta, pela descrição sempre com a sua marca e pela estória!

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  5. Em todas as histórias, escritas pelo Quito, me senti uma personagem fazendo parte da história, de tal maneira ele descreve, com grande realismo, as situações e episódios. É um deleite lê-lo

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  6. O oportunismo do "Mãozinhas" nada tinha de original. Por onde passei, Ota e Monte Real, conheci diversos. Uns pobres diabos que vendiam a sua dignidade por meia dúzia de cobres.
    Esta estória, que não deixa de ser divertida porque contada com "o toque malandro" que é uma das características do Quito, remeteu-me para outras comigo passadas. E quem é que, tendo "feito tropa", não tem as suas estórias para contar? Divertidas algumas, outras nem tanto.
    Na BA5 (Monte Real) faziam-se trocas de fim de semana de serviço. O pagamento era em "baldas". Desta vez baldo-te a ti, ficas-me a dever uma. Vamos ver se eu vos consigo explicar como funcionava esta engrenagem.
    A habilidade estava em acumular o nosso serviço com o de um amigo, para ele se poder baldar...
    Eu era Meteorologista e quando, por escala, tinha que ficar na Base, tratava de ver quem estava escalado para esse fim de semana. Assim, era frequente que eu acumulasse a Meteorologia com o Controlo Aéreo (para dar balda ao Abílio Soares) ou com Material Aéreo (para baldar o Pedro Martins) e eles ficavam-me a dever uma...
    Claro que isto era possível porque não havia voos durante os fins de semana e o nosso trabalho de especialidade não era requisitado. Sem voos, qualquer um podia fazer o serviço de outro.
    Uma vez, saiu-me o tiro pela culatra mas é uma estória comprida e fica para outra altura.

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  7. Uma vez ia-me lixando aqui no RAL2
    Respondi presente pelo 353...que não estava!!!Eu era o 354...
    Felizmente chegou ...mas 1 hora depois!!!

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    1. Baldas, ui!!.., havia dois o Luís(filho do dono do hotel Tocaio/Vila Real) e o Jorge(da família dos donos da Coelima) com um Fiat 850 habart e MGB respectivamente!!.., grandes máquinas com que alternadamente me traziam p/Coimbra e levavam p/Ota ao fim de semana.Era chefe e desligava-os dos chamamentos, um que que ria vir todos os dias correr para Vila Real com os amigos e o outro ir para uns primos em Lisboa(Discotecas) mas enquanto recruta e especialidade tive os fins de semana garantidos.
      Quando saí da recruta p/Alverca e B.A.5 tornei-me exímio na boleia..
      Mas enquanto recruta e especialidade fiz uma grande amizade, o Ten-Cor Tomás mas esta história fica para outra altura que quando se diirigia me chamava DR ( ó Viana o respeitinho é muito lindo!!)
      Fernando AZENHA

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  8. Eu nunca paguei nem um centavo para me fazerem serviços. Se não arranjasse quem o fizesse por troca, fazia-o eu. Nunca alimentei pançudos!

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