AS MEMÓRIAS DO ANTÓNIO
VAZ
O António Vaz, a balança e o livro dos assentos ...
Há um silêncio que nos inquieta. O café do Real morreu com a
aldeia. Juncal do Campo, afundou-se no desespero do galope trepidante da vida.
Da vida de hoje. Eles, os mais novos, partiram de mala da mão. Ficaram apenas
os mais velhos, na contagem decrescente dos dias. Ele, o António Vaz, vai
resistindo. Senta-se na paragem do autocarro, junto ao café que foi seu
sustento de vida. Não é raro, nestes dias de calor, observá-lo a deambular
junto ao Real, os olhos baços de solidão. Mas fala, sempre que a conversa de
tempos de antanho vem à liça. Dos seus oitenta e nove anos de idade, apenas
esteve três fora da aldeia. Recorda, com saudade, os tempos em que foi
proprietário daquele café, juntamente com o falecido Real. Abria as portas às
sete horas da manhã e fechava às dez horas da noite. Por vezes, depois da
labuta, ainda pegava na viola para tocar um fado. E, com um grupo de amigos,
chegava a visitar as casas da aldeia e a deslocar-se vários quilómetros,
tocando e cantando à desgarrada.
Há um silêncio que nos inquieta. Olhamos para dentro do velho
café, que também era taberna e mercearia. Tudo é penumbra. A velha balança
ainda lá está, em cima do balcão, bem conservada.
O balcão, esse, dá já sinais evidentes de rendição. E, nas
prateleiras, os destroços de alguma mercadoria, à espera dos fregueses que
nunca mais voltarão. Morreu o Real e morreu a aldeia. Morreu a escola primária,
frequentada por mais de cem crianças, em épocas recuadas. Agora, nem uma.
Fechou-se a porta do um mais um igual a dois. Do dois mais dois igual a quatro.
Dos feitos gloriosos dos nossos antepassados. Do pesadelo da tabuada. Agora que
a aldeia se esvaiu pelo presente, já só resta o pesadelo da vida.
Há um silêncio que nos inquieta. Um luto feito de ausência,
que perpassa pela sala escura e húmida do café do Real. Quantas tardes, quantos
dias de glória, com os parceiros a comerem todos da mesma malga. E a camioneta
da carreira que, vinda dos lados do Fundão, ali parava para os passageiros se
refrescarem da jornada. Por vezes, até dava para o António Vaz jogar uma
partida de “damas” com o motorista. Relembra o livro dos apuros do café, que
mais não era que o livro das contas, onde assentava também, os nascimentos e os
que se finavam, passando pela data de inauguração da Torre do Relógio do
Juncal. Uma amálgama de sentimentos, no rol da matemática dos fiados.
Ele, o António Vaz, homem cordial de educação esmerada, é o
último resistente. A sua cabeça pequena num corpo franzino, é um cofre de
memórias. Lembranças que se extinguirão para sempre, porque ninguém ficará para
as contar.
Há um silêncio que me inquieta.
Quito Pereira
Vida e morte de mais uma aldeia de Portugal.
ResponderEliminarÉ o relato feito com maestria do que tanto já aconteceu em tantas aldeias de Portugal, principalmente há umas dezenas de anos....e que dificilmente a esmagadora maioria jamais tornará a ter vida..Uma ou outra ainda vai conseguir a ter hipótese de reviver com o turismo!.
Em nada ajuda a não constituição familiar assente nos filhos.A deminuição da população é bem evidente! ´É o PORTUGAL que temos hoje e cujo futuro dificilmente melhorará!.
Viva Quito!
ResponderEliminarLá nos ias dando notícias intervaladas, mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa...
Aqui, hoje, temos o nosso Quito de volta, derramando na escrita a que nos habituou, todo o seu amor e carinho pela aldeia, pequenina, que vai sumindo como que escapando por entre os seus dedos, sofrendo a erosão dos tempos modernos. Os jovens vão enlutando a aldeia com a sue fuga para meios maiores, procurando uma vida diferente da dos seus antepassados. Os velhos vão ficando, remoendo as suas memórias, criando um silêncio inquietante...
Parabéns, Quito. Mais um belo naco de prosa.
Toma lá aquele abraço. Tinha saudades tuas.
Nas nossas aldeias a única garantia que os seus habitantes têm, nos dias de hoje, é que cada vez terão menos! Menos escolas, menos lojas menos postos clínicos, menos agricultores e menos gente!
ResponderEliminarQuem é que quer viver num lugar, cuja farmácia, o médico ou a escola, mais próximas, ficam a 40Km?!... Onde não há indústrias, serviços nem agricultura, cujos produtos são proibidos cultivar, em benefício dos produtos de má qualidade, que vêm da França (caso da batata, por exemplo) ou de Espanha (caso da fruta)!... Quem aguenta um inverno rigoroso, com preços de energia altíssimos?
Tudo isto tende a piorar, porque as prioridades dos políticos são outras...
Compreendo bem a angústia do Quito! Sinto a mesma angústia quando viajo pelas aldeias do interior e no entanto nem conheço as pessoas!
"Batatas que vêm de Franca, de mà qualidade"? Nao concordo, Alfredo! Isso entra naquele capitulo "tudo o que vem de fora, nao presta"!Mas face, à qualidade excepcional deste texto, isso é um assunto menor.
ResponderEliminarA globalizaçao veio alterar nao so todos os esquemas financeiros como também o habitacional. Porém, é muito fàcil apontar erros ou culpas para os outros. Toda esta ganância pelo dinheiro fàcil, contribuiu para todos estes désastres humanos que assistimos diàriamente, nesta velha Europa.
Antigamente, as fàbricas criavam riqueza humana e financeira. Agora, com o aumento substancial da "classe investidora", os problemas humanos sao cada vez mais desprezados!!!Na sua propria casa, a partir dum computador, milhoes de Individuos, investem capitais em empresas, para no final receberem chorudos dividendos!!! A saude ou o estado depressivo dos trabalhadores, deixou de ser assunto! LUCRO FACIL tornou-se a palavra-chave desta geraçao!!!
Parabens Quito. Estàs de volta, com um texto cheio de ternura! ADOREI !
Bobbyzé, concordo em absoluto contigo, quando dizes:" Mas face, à qualidade excepcional deste texto, isso é um assunto menor."
EliminarMas quanto à qualidade da batata que importamos de França, não tiro nem uma vírgula ao que disse e ainda digo mais: Nem de borla as quero!... E a fruta espanhola idem aspas.
Muito provavelmente, tu comem batata boa e a má é exportada para Portugal!...
Todas as aldeias têm os seus emblemas. Emblemas que poderão ser pessoas. O António Vaz e o Real, são figuras queridas no Juncal. O velho Real, de grande compleição fisica e a arrastar uma perna, contrastava com a figura delgada e pequena do Vaz.. O Real, partiu um dia para o lugar dos justos. O António Vaz vai resistindo e, há alguns meses, um jornal da região, deu-lhe honras de página inteira. O Vaz relatou a sua vida. Afinal, nada que eu não soubesse de viva voz, nas conversas no balcão da mercearia, que também era casa de petiscos. A aldeia, está moribunda e pasmada no Tempo.
ResponderEliminarAgora parti. Um dia voltarei ao outro lado da montanha. Trilharei os caminhos da solidão. Relembrarei as mulheres daquela Beira e os mineiros da Panasqueira. Vidas sem vida. Cinzentas e sofridas. Onde, em tempos antigos, a solidariedade e a partilha, eram realidades vividas. E que a palavra dada letra de lei. Hoje, já não tenho tanto a certeza. Porém, ainda privei com gente daquele povo, gente antiga, que são baluartes de honradez e de vidas agrestes. E são esses que me ficam na memória ...
Bem vindo, amigo Quito!
ResponderEliminarOs relatos das tuas vivências por terras beirãs já tardavam e assim, imprimidas na memória, lá vieram à liça.
Regressado às tuas origens também terás material para reflrtires no que toca a desertificação...
Outros tempos, outras vidas!
Espero agora que nos fales sobre o presente, feliz e esperançado na continuidade do amor e da amizade.
Acho piada a comentários de pessoas que deram de frosques por não terem nada por cá, quando precisaram e fugiram (falo no Bobbizé).
ResponderEliminarEu também fugi em 70 para o Luxem. mas regressei.
Gosto muito de falar de coisas que conheço bem,quando não conheço calo-me.
Desculpem o desabafo,mas de bitaites estou farto.
Descomprimido e em liberdade plena de trabalho quotidiano,regressado à sua Coimbra, dás-nos um texto com todo primor de um grande resistente.....
ResponderEliminarParece uma mini- autografia tua.
Como te compreendo e às gentes dessa terra onde tantos amigos fizeste.
As saudades irão surgir de quando em vez!
Gosto de te ver por cá. tinha saudades tuas e de ler a tua prosa encantadora, ternurenta, cheia de afectos. Entendo que tenhas estado ocupado com uma preciosidade que te deram há uns meses e à qual desejo toda a felicidade do mundo.
ResponderEliminarO teu texto é uma reflexão sobre o desaparecimento de vida nas aldeias do interior que custa ver acontecer. Não há mais esperança de ver de novo crianças a brincar por lá. Que vai ser deste pais sem vida nova?