Monumento aos Navegantes
Naquela primavera parti. Numa mão, uma mala de viagem. De braçado, um ramo de flores. Ao ombro, uma mochila. Do varandim do navio, ouvi o paquete apitar três vezes. Depois, um Mostrengo alado, imundo e grosso, no dizer Pessoano, pairou a esvoaçar sobre as nossas cabeças de meninos, a aniquilar quimeras de quem ainda nem tinha barba na cara. Assim me despedi de Lisboa. Olhando, cabisbaixo, um Tejo triste.
Ali, a dois passos, navegámos lentamente,
em frente do Monumento aos Navegantes de outros séculos.
Depois, veio o mar largo e imenso. Um oceano verde e
profundo, em que a branca espuma se roçava fagueira, pela proa negra do monstro
de ferro e aço, que sulcava um oceano de sofrimento e de inquietações.
Um mistério avassalador de água salgada, que me penetrava
pelas narinas. E um sabor acre a solidão. Uma solidão partilhada, com mais de
mil camaradas de armas, acantonados no ventre daquela nau de desesperança. Naquele
momento, percebi que cada um de nós era uma ilha. Uma ilha deserta de ideias.
Mas uma ilha prenhe de sentimentos e de emoções. Amarrados ao nosso passado. Amarrados
ao nosso presente. Amarrados às lágrimas da família. Amarrados ao último beijo das
namoradas. Amarrados a uma farda. Amarrados aos Ventos lúgubres da História. Amarrados
ao Destino.
Passaram quarenta e três anos, que o cais de Alcântara ficou
para trás. Há dias, num sábado soalheiro, passeei devagar, num ritmo pausado,
junto ao Monumento aos Navegantes. Ali, olhando a Lusa epopeia marítima, recordada
naquele promontório de heróis debruçado sobre as águas, perpetuando os que da
lei da morte se foram libertando, no cantar Camoniano, observei atentamente com
um misto de admiração e respeito, o Infante e o seu cortejo de sábios, poetas, pintores,
cronistas, missionários e marinheiros, numa alegoria em alva pedra esculpida. No
folhear, página a página, de uma Memória Coletiva apontada aos céus, talvez num
agradecimento Divino.
De novo alarguei a vista sobre o Tejo. Um Tejo jovial,
salpicado aqui e ali, de barcos de recreio de velas coloridas, ao sabor do
vento. Era o rio a abraçar Lisboa, na voz do cantador. Mas, para mim, que não
cheguei a levantar âncora da lonjura daquele dia da partida, que mais não era
que o prefácio de um manual dos tormentos que me esperavam, o Tejo será sempre
um poema baço e sem rima. Um caudal revolto de memórias. Um rio triste.
Quito Pereira
Um rio triste num texto lindo e saudoso. Como deve ser difícil recordar essa partida mas como deve ser gostoso recordar a chegada. Um beijo
ResponderEliminarO texto é uma delícia mas o título, então, é genial: "Rio triste", com o duplo sentido da palavra "rio". Grande malha, Quito!
ResponderEliminarComo te compreendo Quito!
ResponderEliminarHá marcas que nos haverão de perseguir pela vida fora e, mesmo que muitos as enfeitem, jamais se irão apagar das nossas memórias.
ResponderEliminarComo sempre, uma prosa inconfundível!
É recordar um tempo que já lá vai, quarenta e três anos...
ResponderEliminarÉ uma passagem da tua vida, que agora aqui tão bem descreves, aliás como só tu tens o dom e a arte de nos envolver como se nós próprios, tivéssemos passado por esta situação...
São memórias bem profundas, que sei que vais reavivando nas reuniões com os amigos que contigo viveram situações idênticas!
Um abraço e...até logo!
Como me senti emocionada ao ler este texto ! Realmente que memórias tristes ficaram para o resto da tua vida...Um grande abraço, Quito.
ResponderEliminarA descrição impecável como sempre, de um momento triste vida do Quito e que já lá vão muitos anos. Penso que escreveres é uma boa terapia para recordações deste tipo e para os outros, um reavivar de certos momentos passados pois imenso pessoal passou pelo mesmo e muitos até devem ler o blogue. É interessante como uma pessoa pode sentir situações idênticas em diferentes alturas.
ResponderEliminarTambém há 44 anos parti desse mesmo cais, para uma viagem de 60 dias. Para esquecer!... Assim que passámos a barra, comecei a enjoar e foram 60 dias enjoado!... Cheguei a Timor com 45 Kg... pesava quase tanto como a G3. Diziam que íamos em missão de soberania! Eu nunca cheguei a saber o que era isso!!!...
ResponderEliminarPois também parti desse mesmo cais hà 43 anos! Sendo "o menino da Mamä" andei preocupadissimo a reflectir como seria o momento da despedida face à Minha Mae! No final,foi muito mais emocionante a despedida ao meu Pai, pois vi que estava emocionado!
ResponderEliminarBom là fui, deram-me uma G3 que nao serviu para nada e mais tarde, uma guitarra electrica EKO para animar os bailes dos Oficiais no HOTEL LUSO!!
Gostei imenso deste texto, Quito mas, no Barco, quem sofriam eram aqueles que estavam alojados là em baixo, nos poroes (acho que se chama assim). Oficiais e sargentos tinham os seus quartos. Pelo menos, no VERA CRUZ, onde fui! E ai, comecei a abrir os olhos e a topar as diferenças de "castas"!!!!Missao de soberania? Alfredo, iamos mas é dar o cabedal para que os Oficiais de carreira, pudessem continuar a comprar apartamentos ou casas, com as comissoes que faziam!!!