sábado, 20 de setembro de 2014

ENCONTRO COM A ARTE - POESIA



Livros de cordel


Por  Jorge Castro



NOVA HISTÓRIA  DE  LOBOS E CAPUCHINHOS,
VERMELHOS OU DE ARCOS-ÍRIS

-Com um pouco de Soares de Passos, talvez – se ele tivesse, à data, preocupações de teor
Ecológico – mas o certo é que a história de Lobos e Capuchinhos que me contaram na meninice não tem, hoje,
                                                                                nenhum cabimento.

um longo uivo fendeu o fraguedo do planalto
torgas, estevas, giestas estremecem na geada
tão alto o uivo, sofrido
o apelo, o sobressalto
chega urgente a uma loba no alvor da madrugada
apressa o passo em veredas
por seus passos tão trilhadas
e os raios de sol primeiros inundando a serrania
são nos seus olhos luzeiros que vão acendendo o dia

estuga o passo escutando o uivo da loba velha
que lhe traz de longe a voz da premência da ninhada
três cachorros estão à guarda da irmã
que o companheiro
dos três lobachos, o pai fora abatido em caçada
há três dias, sem lamento, com três tiros de emboscada

outro uivo mais pungente, que há três dias faz estrada
leva à ninhada o sustento
à sua irmã quase nada
o fulvo dorso se ondeia no estugar da passada
torgas, estevas, giestas abrem caminho e passagem

e um olhar muito ao longe que lhe segue a caminhada
marca, minuto a minuto, o sentido da viagem
cruza ribeiros, bosquedos, lameiros, terra dourada
atrás do uivo que a chama
labareda que a reclama no mais longe da paisagem
cavalga o dorso dos montes
sem descanso nem paragem
mal bebe a água das fontes
mal sente a brisa encantada
torgas, estevas, giestas dão-lhe guarida e coragem

mas ao chegar ao carreiro que ao seu covil encaminha
calam-se as aves do mato onde a sua prole se aninha
soam três tiros tremendos
do alto da madrugada
e cai no chão uma loba
que traz no dorso a alvorada
e três pares de olhos aflitos
são olhares só, não são gritos…

torgas, estevas, giestas nem pela brisa agitadas
servem de sudário ao dia
na poalha da jornada
e na mudez de agonia
quedam-se os olhares aflitos
no silêncio dos seus gritos
e a loba que em si transporta
a esperança da alvorada
jaz na poeira disforme
e aquele olhar enorme
da vida já não vê nada

nem torgas, estevas, giestas nem a fome da ninhada
e um longo uivo se ouviu no alto da madrugada


4 comentários:

  1. Arrepiante....magnifico....

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  2. O comentario e meu ,que por lapso nao assinei Sao vaz

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  3. Li em silêncio contido, reli com mais pormenor, palavras que são por maior, voltei a ler em voz alta e, à medida que lia o som ia em crescendo, num fulgor de esperança!
    Subitamente, aquele som seco, forte, estremeceu-me e dei comigo, triste, pensativa e com uma lágrima teimosa que não me deixou ver as estevas, as torgas, apenas as vidas ceifadas!

    Belo, muito belo, Jorge.

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  4. Grato pela evocação, amigos. Por vezes, dá-me para aqui, também, que o mundo é assim feito: painel de azulejos onde, quadrado a quadrado, o riso pode aconchegar-se à lágrima... Abraços.

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