quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

EM COIMBRA HÁ MUITOS ANOS...

Tinha idade para ser meu pai. Ou mesmo avô. Era um daqueles homens a quem é difícil adivinhar a idade.
Já estivera em Peniche, condenado por actividades subversivas contra o Estado, onde o tempo tinha parado uns anos.
Trazia sempre consigo uns papeis rabiscados com letras que ia fazendo para canções de protesto contra o regime. Mas só conseguia fazer-se ouvir na pacatez do seu humilde quarto alugado da Rua das Padeiras, e depois de cuidadosamente se certificar que a malta que o escutava era de confiança.
Frequentava a Democrática e não regressava a casa sem passar pela Rua Direita onde, dizia ele, o Salazar com uma simples assinatura tinha decretado a extinção legal das prostitutas, transformando-as em mulheres de “vida fácil”!
A velha viola parecia gritar de revolta quando os seus dedos inábeis lhe martelavam as cordas, acompanhando, dissonantes, os versos que ele cantava com voz rouca e os olhos em alvo.
Garantia-nos, esperançado, que um dia a sua voz poderia ser ouvida em inteira liberdade.
Com o 25 de Abril, aprestou-se para cantar em comícios e sessões de esclarecimento, mas nunca conseguiu fazer-se ouvir como sonhara.

Desculpava-se dizendo a quem com ele privava:
Antes da revolução as minhas canções esbarravam contra a ditadura.
Agora que sou livre, esbarram contra a dentadura...
Rui Felicio

24 comentários:

  1. Na sua escrita escorreita e sem grandes adornos, o Rui Felício passeia o leitor pelas ruas de Coimbra, levando-o a calcorrear a estreita Rua das Padeiras, uma das ruas míticas da Baixa coimbrã. Também a Democrática, com um passado soberbo de tertúlias estudantis e da boémia da cidade, tudo fundido em ideais partilhados ao som do trinado da canção do Mondego.



    A história é jocosa. Uma outra faceta do escritor. Por vezes, muitas vezes, sob um manto de fantasia, os seus textos desaguam na mais inesperada das surpresas. Muitos dos seus escritos têm essa matriz.

    Não foi agora o caso, mas até dará para meditar. Quantos sonhos perdidos. Ou mesmo quantas ambições sacrificadas no altar das conveniências pessoais. E neste particular, a dentadura do cantor da da voz rouca e olhos em alvo, bem pode ser uma metáfora ...

    Saúdo o teu regresso, Rui. Um abraço

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  2. Obrigado Quito, meu amigo.
    Foi ao passar um destes dias pelas velhas ruas da Baixa que tu conheces tao bem que se me formou a ideia desta ficçao.
    Na verdade, uma metafora, como acertadamente dizes, de sonhos perdidos que as paredes daquele casario testemunharam.
    Tantos, de tantos...

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  3. Tudo tem o seu tempo,ditaduras e dentaduras.
    O tempo comanda a Vida.

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  4. História simples que recordando o passado, que embora seja ficção, até podia ser verídica, não fosse a "puta" da dentadura!

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  5. Estou numa fase da vida em que começo a acreditar que o sonho esbarra sempre contra qualquer coisa.
    O texto, à boa moda Feliciana, deixa-nos um sorriso. Mas, desta feita, um sorriso carregado de melancolia e pode-se até dizer de tristeza.
    Ainda assim, fica um ligeiro sabor a um sentimento que tendo por pano de fundo a melancolia e a nostalgia, não deixa de ter um travo de tristeza e alegria. E esse sentimento é a saudade, pai e mãe deste texto.
    Saudades de Coimbra e dos amores que lá tive...
    Aquele abraço, Rui Felício.

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    1. É mesmo. Este texto tem tanto de Coimbra...

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    2. Amigo Viana

      A tua primeira frase, sabemo-lo, é verdadeira.
      Mas, ai de nós, se não retirarmos dos sonhos a esperança, ainda que ténue, de os realizarmos, mesmo que numa infima parte seja.

      Um grande abraço

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  6. O que é que o ginecologista tem a ver com a dentadura.Tás a ver tudo inveritdo!!!!

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  7. O ginecologista até ficou gago...
    Mas a vida é irónica e prega-nos estas partidas.
    O Rui Felício sempre que vem a Coimbra aguça-lhe a criatividade!

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    1. o bate papo no mesmo local-só o chão- do café Caravela mais conhecido pelo café do Silva, comigo com a Suzana e a Celeste Maria , recordou-se muito desses tempos de Coimbra e até eu fiquei entusiasmado ao ouvir as recordações entre a Suzana e o Rui e que passaram por Tomar...Muito interessante!!!!
      Claro depois desta passagem por Coimbra e pelo Bairro só podia dar mais um história sobre Coimbra!

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    2. Foi um prazer imenso estar contigo e com a Celeste, aigo Rafael.
      Também gostei muito de ter estado connosco à mesa o Rui Piçarra. Mais tempo do que é costume, o que prova que também ele se sentiu bem em estar connosco.
      A chegada intempestiva e inesperada da Suzana veio por o sal que faltava no desfiar de recordações.
      E, como cereja no topo do bolo, o aparecimento do Rui Barreiros, proporcionou a vertente mais intelectual que a sua cultura impunha.

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    3. Engraçado e característico de um vereneante coimbrão a passear-se por Coimbra...
      De facto,a ditadura,a dentadura fizeram esbarrar o fado e bem visto,sim senhor,sendo metáfora ou realidade.
      Lamento imenso não ter esbarrado contigo no Bairro...

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  8. Este conto escrito pelo Rui Felício vem-nos lembrar que por um motivo ou outro, chamem-lhe dentadura ou não, não haja dúvidas que há muitos casos idênticos.
    Não desanimêmos, pois se nos lembrar-mos que quando eu aí vivia um professor primário ia para Góis na camionete da carreira, só voltava a ver a família num fim de semana e duas ou três semanas mais tarde, alguma diferença há. Camionetas que não tinham o conforto de hoje pois a suspensão eram as molas. As malas de mão iam na rede e as de casa iam no tejadilho. Subia-se para lá por uma escadas situadas na rectaguarda. Chegar a Góis naquelas camionetas com tantas curvas e com a estrada de macdame que havia depois de passar a Lousã, era quase um acto heróico comparado com hoje.
    Precisamente para a mesma terra foi nomeada uma professora de Coimbra, a quem o meu Pai ofereceu a casa que lá tinha para poder viver, não lhe faltando nada. A referida pessoa preferiu deixar de ser professora a ir para Góis. Hoje estou convicto que aceitaria o lugar com muita alegria. Os meninos quando nascem também caem várias vezes até andarem e a democracia é na mesma. Tiremos é lições do que se passou e forcemos os políticos a encontrarem o caminho certo. Não os forcemos a entrarem no mesmo caminho, pois se assim fôr, não será só culpas deles mas sim uma escolha social como há em muitas outras sociedades. A situação não é boa mas valeu a pena o passo dado.

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  9. Gostei do texto e gostei de alguns comentários. O Carlos Viana (com um "V" porque o assunto é sério) disse uma coisa que me deixou a pensar: "Estou numa fase da vida em que começo a acreditar que o sonho esbarra sempre contra qualquer coisa." É pura verdade. Eu costumo dizer que faço as viagens para lugares longínquos antes da prótese da anca!… A ideia é a mesma! Canto, enquanto o cantar não esbarra na dentadura!…
    O texto do Rui Felício deixou-me a pensar, mas vou tentar afastar os pensamentos!…

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    1. Na verdade, a pequena história que me ocorreu, contém em si mesma a intenção de mostrar que nesta vida os sonhos na maior parte das vezes não passam disso. Sonhos, quase sempre irrealizáveis. Mas que nos fazem lutar por eles, não desistir de os alcançar,
      Porque essa é a forma de estarmos vivos. De não vegetarmos...
      Vegetar é morrer antes da morte.

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    2. Excelente premissa,Rui..
      Entre sonhos,utopias,tristezas,alegrias vamos vivendo,de facto,com vigor e esperança.
      Vegetar não!
      Então escolho o suícídio já que não temos outra forma legal e sem dor para ACABAR de vez.

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  10. E agora, que dizer? Os vossos escritos deixam-me triste, abatida, desiludida. Mas gosto tanto de vos ler que vou fazer um esforço para continuar a sonhar. Será que esses sonhos se tornam realidade.... Que importa, continuem a deixar-me ler-vos

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  11. Bom, hà vàrias coisas por comentar acerca deste belissimo texto do Rui!
    Primeiro, fui muito feliz na rua das Padeiras. O meu padrinho era proprietàrio do unico estabelecimento em Coimbra, que fornecia os lagares de azeite de todo o Pais, em ...(como é que aquilo se chamava?) artigos de sisal ou material parecido, que se ponham nas mos, onde se eram esmagadas as azeitonas. Eram peças redondas com 1m de diametro.Funcionavam como filtros mas nao me lembro do nome exacto.Para là ia muitas tardes, brincar para cima de tapetes fabulosos, que em muito alimentavam os meus sonhos de miudo!
    Sonhos irrealizàveis?A partida, considero que todos os sonhos possam ser realizados!E o meu optimismo tem-me ajudado bastante. Puto, sonhei em ter uma banda.Pois, no meu segundo ano de tropa em Angola, fizeram de mim musico!Abrilhantava os bailes dos oficiais no Hotel Luso, no Moxico, como viola ritmo dos WOODSTOCK! A partir dai, sonhava frequentar todos esses monstros do showbusiness. Em 76, baptismo de fogo com uma primeira entrevista com PETER GABRIEL (GENESIS). Sempre sonhei ter bons amigos!A prova està ai, neste blog!
    Em MIRA PRAIA, sonhei que o meu futuro me transportaria um dia para bem longe!Abençoada hora! Farto de tanto cantar o AMOR, naquelas baladas nocturnas nas margens da Barrinha, acabei por conhecer o GRANDE AMOR DA MINHA VIDA!
    Nunca sonhei nem nunca me preocupei com doenças, que poderiam um dia vir a perturbar o meu bem-estar.Melanomas, carcinomas, Crohns, lutei contra isso tudo e graças a Deus, continuo sonhando!Porém, tendo sofrido, nao esqueço aqueles que sofrem!
    O proximo sonho chama-se MIAMI! Como diz e bem o Big Boss do LICOR BEIRAO:ao segundo dia, naquele paquete, com 18 bandas (e que bandas!) levantarei vôo!!!!!

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  12. As ceiras de rafia?
    Se há optimistas em alto grau, és tu!!!!
    Miami espera por ti!

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  13. Bobbyzé
    Lembro-me dessas peças de sisal de que falas mas nem sabia aonde eram vendidas. No que vi, enchiam-nas de azeitonas e colocavam-nas em cima de um cilindro horizontal metálico estático de uma espessura de cerca de dez centímetros, aproximadamente da mesma largura da ceira como diz o Rafael abaixo. Havia um cilindro por cima idêntico que descia hidráulicamente e comprimia a referida ceira. Era nesse momento que a azeitona comprimida, deixava cair o azeite. Se não falasses, já nem me lembrava disto.
    Fazes muito bem. Às doenças não se lhes dá importância. Quanto mais se ligar, pior e quanto à vida, é para sonhar com esperança.
    Diverte-te com Miami e com tudo o que possas. Bom vôo aquático.

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  14. Sim, a palavra devia ser "ceira" mas a descriçao que fazes, Chico, é mesmo a realidade da época!Também se vendiam là na loja, esteiras e cordas de todos os tipos e feitios.Um fulano que se quisesse enforcar, tinha ali com que escolher. So que naquele tempo ninguem se enforcava!Até os mais pobres viviam relativamente felizes. Havia muita solidariedade entre as pessoas.
    Lembro-me de ir a casa de fornecedores do meu Padrinho, para Ferreira do Alentejo!!!Ele era natural de ANCÄ!Dai o meu problema com as pedras na uretera!!!!

    Em Portugal, tivémos uma infância feliz.Aqui na Alsàcia, quando relembram o passado, isso tem imediatamente uma conecçao com as 2 Guerras Mundiais!!!Nos anos 40, aqui ninguem comia carne nem peixe!!!

    Um bom domingo para todos!
    NB-Chico! A minha prima de MONTREAL deu à luz 2 gémeas:FIONA e LILLY. Estao bem e ao quentinho!

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  15. Bobbyzé
    De facto tens razão, hoje a corda funciona muitas vezes como uma arma.
    As pessoas actualmente têm outras necessidades pois só a televisão cria-as. O ensino puxa mais pela cabeça e compreensão do que antigamente, os meios de comunicação levam as pessoas a pensarem em muitos mais e nos mais variados campos, muito em especial a referida televisão. Assim as pessoas pensam imenso nas consequências que muitas vezes nem acontecem mas elas mesmo criam-nas e chegam a um ponto em que não vêm resolução para o problema ou problemas. Dizem os que já tentaram usar a corda e outros meios, que é como um muro em betão armado que têm à frente. Nesse momento tomam a decisão errada. É bom convencer as pessoas a utilizarem as linhas de auxílio, pois falam com outras pessoas sem se conhecerem e que podem acompanhá-los.
    Neste momento está muito em "uso" situações dessas com crianças e adolescentes escolares que são assediadas pelos colegas. É uma luta sem fim mas em Portugal, há uma professora que criou um jogo tipo "Glória" que deve ser muito didático tanto para os que assediam como para com os assediados. Pelo que li, é um produto português muito bom. Também temos do bom.

    Aqui as pessoas são muito independentes mas há muita solidariedade quando acontecem certas fatalidades. Vimos há meses o Incêndio do Lac-Mégantic e a semana passada no incêndio na Isle Verte que levou a vida a onze pessoas e há vinte e duas desaparecidas. A temperatura era abixo de vinte negativos e o vento soprava a cinquenta kms/hora. Os bombeiros e restante pessoal a trabalharem naquelas condições, não tiveram chances nenhumas. É por isso que há desparecidos, pois está tudo congelado e não querem partir nada. Estão a tentar descobrir os corpos com vapor de água. Vai levar tempo. No entanto notei a solidariedade pois os sinistrados foram nos primeiros minutos recebidos pelos vizinhos, pessoas que passavam com o automóvel, enfim todos ajudavam como podíam até chegarem os serviços de assistência. Se a Segurança Civil e a Cruz Vermelha se apresentaram imediatamente no local, notei que tendo começado o incêndio às três da manhã, os representantes do Governo às seis já lá estavam.

    Quanto à guerra que nós não conhecemos, falando aqui com testemunhas dessa época, nós fomos uns felizardos. Nem temos ideia. Comtam tudo com uma simplicidade... São lições de humildade extraordinárias. Em países da Europa, a carne que alguns comiam, era a de cão. Deve ser de lá que realmente se usa dizer "gato por lebre", pois não tinham mais nada. Por isso, ainda hoje há quem esteja habituado a comer assim.

    Isso de ter gémeos, deve ser uma alegria. A tua prima está de parabéns. Ao quente, não tenho dúvidas.
    Uma boa semana.

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