sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

RENASCER ...





Há um Novo Tempo que chegou ...

Há um Tempo que partiu. Um Novo Tempo que chegou. Aqui, neste vazio espacial, somos senhores e vassalos de nós próprios. Caminhamos errantes por léguas e léguas sem fim. Embarcámos nesta nave feita de granito que nos endurece a face. Não há lágrimas. Aceita-se o presente. Do passado, apenas um sussurro, que se pressente no silêncio avassalador das montanhas.

A reta da Esteveira, é um traço negro de alcatrão, riscado no meio do nada. Ali, do lado esquerdo, por entre dois pequenos montes redondos adornados de pinheiros, aparece, como por mistério, os telhados simples de um povoado que se esconde, como que envergonhado do seu berço singelo.

Barbaído se chama, aquele recanto beirão, onde habitam cerca de cem almas. Por uma estrada estreita e sinuosa, lá chegamos. Ali, naquele vale polvilhado de um aglomerado disperso, vivem-se dois extremos. O clamor do sol impiedoso do verão e o frio cortante do inverno, onde, por vezes, é difícil o acesso da camioneta da carreira, por causa da neve.

Naquele Lugar, também houve um Tempo que partiu. E um Novo Tempo que chegou. Um momento comemorado de forma simples. Tão simples como as suas gentes. É no pequeno Centro Desportivo e Cultural da aldeia, que se assiste à reunião dos que moram nas cercanias da Serra da Raposa e por ali passam ou ouvem nas noites após os dias de trabalho árduo na courela, percursos sofridos de vida. Naquele serão tão especial, alguns, os mais novos que ainda resistem ao drama da desertificação, juntam-se para conviver e celebrar a chegada do Novo Ano.

Longe do bulício endinheirado das festas do Funchal, do carnaval antecipado da Serra da Estrela ou do requinte apenas acessível a alguns do casino do Estoril, Barbaído emerge do fundo do seu próprio Tempo e da sua solidão ancestral. Ali, lá, é o arado a batuta que rege a sinfonia da vida. Quando do revolver da terra fofa e pródiga, se assiste ao milagre da generosidade das sementeiras, a oferecer ao Homem o produto do seu esforçado labor.

É esse, para estas gentes, o significado da palavra renascer. Um recomeçar que não se traduz no virar de página de um simples calendário. Mas no murmúrio de uma prece,  dita no recato do lar, que se não troca por uma bandeja de fogo de mil cores a estrelejar no ar, ou por uma taça de cristal a transbordar de champanhe. Lá fora, naquela noite de desejos e de esperanças para muitos nas mais diversas latitudes, apenas na nossa retina a humidade baça que invade as ruas estreitas do casario, por entre a luz difusa e mortiça dos candeeiros a iluminar cada beco e cada esquina. É o suspiro conformado da alma, em Tempo de invernia …
Quito Pereira        

18 comentários:

  1. Renascer é todos os dias,Quito!
    Mas nos pequenos meios,aldeias,o significado é bem diferente do que os citadinos pretendem impingir...Diga-se um desgoverno eleito mas desviante em tudo.
    É o recomeçar de mais um dia de vida,trabalho,de convivência e de uma vida demasiado humilde por muito mais que desejem e mereçam melhor.
    A tua vivência é rica no meio de pessoas tão sãs...
    Renascer é ser são,honesto,amigo,justo e não "roubar" estas qualidades com tortuosas frases confusas para nos enganarem, dia a dia,até a dignidade humana se propõem tirá-la.

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  2. No relógio que encima este teu belo texto ainda faltam 2 minutos para o nascer de um novo tempo. Dois minutos que dá para antever como será a despedida de um ano e a passagem para o outro, nas diferenças entre o campo e a cidade!
    Essa diferença talvez tenha sido bem diferente do que o foi em anos anteriores! Até está bem patente nas linhas que escreves ao comparares como a passagem foi passada na aldeia de Barbaído, onde também houve um tempo que partiu e o novo tempo que chegou! Simples como as gentes simples que estavam no Centro Desportivo e o contraste com o bulício endinheirado dos grandes centros de diversão, onde tudo foi há "grande e à francesa". Crise?.Qual crise? Sim talvez alguma, pois este ano o Dubai ultrapassou Portugal(Madeira) no Guiness!!!!
    Mas ainda bem que foi tudo em grande. Todos lucraram, até as carpideiras habituais!

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  3. Obrigado pelo teu comentário, Olinda. Este texto resultou de uma reflexão que fiz aquando da passagem de ano. Por ter conhecimento da realidade do Barbaído por pessoa que ali vive e que ali passou o ano, partilhei esta realidade. Barbaído é longe do mundo. Pelo menos do mundo citadino para o qual o mundo campesino nada ou pouco diz. Mas é uma realidade que enriquece e permite melhor entender o mundo que nos rodeia.Um país a duas velocidades. Ali, para lá daqueles montes tragados pela escuridão da noite, vive gente. Pequenas comunidades que sobrevivem por si, longe dos grandes centros de decisão. Gente esquecida. Esta partilha, pelo desinteresse que suscita, é bem a prova disso ...
    Abraço

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  4. Obrigado Rafael pelo comentário. O comentário anterior era igualmente dirigido a ti, mas por motivo inexplicável, não assumiu o que eu tinha escrito. Apenas um primeiro comentário que eu tinha eleborado. Já tens luz ? Espero que sim ...
    Abraço

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  5. Ainda não tenho luz na minha zona do Bairro, apesar de já ter alertado a EDP há mais de 2 horas!
    Por aqui continuo na escuridão...tal como na escuridão em compreender este Mundo em que vivemos! Salve-se quem puder! Reina a hipocrisia!

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  6. A luz não me faz falta,eu trabalho a pilhas.
    Tenho que contribuir para a economia do país.
    Cada um tem que aproveitar o que tem na zona em que vive, e mediante as festividades,mas com muita calma para não entrar em devaneios.
    O barco tem que ser conduzido de forma segura por quem sabe,e não por garotos.

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  7. Tens sorte, Tonito. Metade da Vasco da Gama está sem luz há 2 dias ...

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  8. Saramago referiu-se à Peninsula Ibérica como uma jangada de pedra flutuando à deriva afastada da Europa que a absorveu sem cuidar das profundas diferenças culturais e de costumes que essa união europeia espúria e forçada esqueceu,

    O Quito Pereira passeou por aqueles lugares a que chamou "nave feita de granito" onde jaz plantada a aldeia de Barbaido que conheci quando palmilhei em "risiveis jogos de guerra militar" aquela nave, na minha passagem por Penamacor e Castelo Branco.

    Ocorreu-me o paralelismo com a jangada de Saramago, porque também o Quito Pereira nos chama a atenção para as diferenças culturais entre o Portugal profundo, genuino e verdadeiro e o asséptico, falso e descaracterizado ambiente das nossas maiores cidades.

    Não é a primeira vez que esta aldeia vem à luz pela pena do Quito. Já antes a ela se referiu noutro texto de igual qualidade, que intitulou Viagem ao Centro da Terra.

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    1. O meu amigo Rui Felício, ao invocar Saramago, por certo que também o nome de Namora lhe acudiu ao pensamento. A Jangada de Saramago e a Nave de Namora. Recordando igualmente Retalhos, Namora transporta-nos para o seu mundo, enquanto médico em Monsanto. As suas angústias, os seus dramas e as suas perplexidades, que descobrimos nas páginas do seu livro, bem podiam ser escritas hoje. A minha experiência de um quarto de século no meio daquela comunidade beirã, faz-me perceber o quão genuína é a pena de Namora no seu brilhante prosar, "Retalhos da Vida de um Médico" é um livro atual. Não foram as mais fáceis acessíbilidades ao litoral que mudaram o sentir do povo na sua essência.

      O Rui Felício também navegou na jangada do nosso Nobel. A sua sensibilidade, permite-lhe rebobinar parte do filme da sua vida e entender o peso das minhas simples palavras, sem a erudição dos que o fizeram em reconhecidas obras literárias.

      Estou grato pelo teu testemunho. Barbaído, que um qualquer dia futuro vai ler este texto, também te agradecerá o testemunho, porque por ali passaste e gravaste na tua memória o nome de uma terra simples e um povo simples ..
      Um abraço

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  9. E no novo ano continuas em grande. Que bom ler-te

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    1. Obrigado, Ló. Fico sempre satisfeito por te encontrar neste espaço.
      Um abraço

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  10. O Quito com uma palavra tão simples "Renascer", traz até nós a diferença de vida entre a cidade com os seus meios e a aldeia com as suas rudezas, aonde as pessoas se contentam com pouco e muitas delas por vezes até são mais felizes que as citadinas pois até nem anseios, nem a aspirações têm direito. É nesse contexto que nos fala de Barbaído aonde as pessoas aceitam o presente, vivem numa autêntica solidão, suportam temperaturas extremas de quadrantes opostos, e toca num assunto que é uma realidade geral na maior parte dos países nos dias de hoje com a sua frase: "os mais novos que ainda resistem ao drama da desertificação". No meio do grande êxodo dos mais novos para as grandes cidades, nota-se neste momento uma tentativa para os ligar aos campos pois ainda vai havendo quem não queira partir. Além das facilidades de várias ordens que lhes devem ser dadas, o problema principal desses jovens que desejam ficar é encontrarem outro jovem do sexo oposto que esteja disposto a acompanhá-lo na vida dos campos. Para isso, hoje já se organizam reuniões e concuros que os levam a fazerem conhecimentos mútuos com outros jovens dispostos a levarem a mesma vida e que tem tido os seus resultados positivos. Quando o ideal é o mesmo, as pessoas adaptam-se melhor às situações. Neste caso que até se juntam dois ideais, amor e meio de vida, a vida fica mais facilitada. Esperemos que "Barbaídos" tenham tendência a desaparecer com o modo de vida actual mas que sejam capazes de manterem essas lindas terras que polvilham os campos.

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    1. Chico,a desertificação é um fenómeno dramático, sobretudo no interior do país. A fazer fé no Jornal do Fundão, a Beira Baixa perdeu 3O OOO pessoas nos últimos dez anos. Muitos que já tinham voltado às suas origens, voltaram a emigrar ...
      Abraço

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  11. Aqui fica, também a minha homenagem aos maestros que movimentam a batuta que rege a sinfonia da vida!
    Um abraço ao Quito que nos vai lembrando, com a sua bela escrita, as vidas duras destes sobreviventes, esquecidos por quem de direito!

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    1. Um abraço, Alfredo. Palpita-me que breve nos encontraremos. Dá um beijo à Daisy por nós ...

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  12. A solidão, uma noite em que os números mudam no calendário, uma introspeção resultante de observação e sensibilidade, o amor ao próximo, a arte de bem contar!
    Eis o que hoje nos comove e sentimos que ninguém se demove para alterar a vida dos que, ao renascer, continuam a envelhecer entaipados na monotonia do seu mundo.
    Bom Ano, Quito, começaste bem o 2014!

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  13. Na verdade Celeste Maria, existe uma outra realidade - o mundo campesino. Não é exclusivo da Beira Baixa, mas quem conhece esta realidade, mesmo observando apenas com espírito crítico, não deixa de se interrogar. Daquela zona, foi a pequena povoação de Ingrenal que mais me impressionou. É uma aldeia encarrapitada no cimo de um morro, onde o silêncio é avassalador. Sobe-se por uma estrada estreita e perigosa com despenhadeiros de meter respeito. Dali, só se avistam serras carecas, desprovidas de qualquer vegetação. E um vento uivante e eterno. Fica a cerca de 4O Km de Castelo Branco ...
    Abraço

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