da
DAISY
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O homem imponente desceu do
grande automóvel preto, enquanto o motorista fardado lhe abria a porta e, com a
outra mão, levantava o boné respeitosamente. Dirigiu-se para o edifício envidraçado,
onde outro homem-de-boné-na-mão o cumprimentou. Sempre direito, sempre sem
desviar o olhar de um ponto que prèviamente devia ter marcado, continuou a
passar portas e portinhas com a vénia dos inevitáveis
inferiores-de-boné-na-mão.
— Senhor Administrador…
O Senhor Administrador chegou por
fim, ao seu gabinete particular, onde o aguardavam milhentos papéis com
milhentos problemas. Fechou-se a porta sobre o último homem-de-boné-na-mão.
Carregou num dos botões do
quadrado colocado numa das pontas da secretária.
— Durante meia hora, não quero
que me interrompa!
Tirou o dedo da bolinha colorida.
NÃO QUERIA que o incomodassem. Tinha meia hora para si, e NÃO QUERIA qualquer
interrupção. O Senhor Administrador podia dar-se ao luxo de NÃO QUERER ou de
QUERER. Podia exigi-lo. Ordená-lo. Mas o que é que ele queria ou não queria na
realidade?
Despiu o sobretudo, acendeu um
charuto. (Quando fumara o seu primeiro cigarro? E o último?) e refastelou-se na
cadeira-de-braços de coiro preto. Meia hora eram trinta minutos, eram mil e
oitocentos segundos. Tinha ele o direito de "roubar" mil e oitocentos segundos aos seus accionistas? E quantos segundos, quantos minutos, horas dias,
meses, quantos anos não lhe haviam "roubado" eles?
A mulher de "carne de
xaile", como diz o poeta, levantou a mão e castigou o menino. E o menino
virou para os outros e para a mãe também, os olhos grandes numa pergunta
mesquinha de "porquê?". Mas a pergunta foi-lhe devolvida, sem
resposta. E cada vez que faltava o pão, cada vez que o menino dizia "tenho
fome", a mãe de carne de xaile levantava a mão, nem ela sabia porquê; o
gesto estava-lhe de tal modo condicionado, no inconsciente, com a frase dita,
como xaile lhe estava gravado na carne, mesmo depois de deixar de usá-lo. E o
menino calava-se. E o menino não chorava; guardava para si todas as palavras
berradas que desejava dizer. Arrecadou-as todas, bem lá no fundo, e foi
enchendo, enchendo. Era um saco sem fundo; era um menino e não compreendia bem
quando já chegava. Só quando cresceu, se deu conta de que o seu saco já estava
muito cheio; já não cabia mais nada. Era altura de o esvaziar. Era altura de,
pelo menos, parar de "enchê-lo". Disse adeus à mulher com o xaile
gravado na carne, com um gesto de bater gravado no inconsciente. Mas muitas mulheres
que encontrou, muitos homens com quem lidou, tinham também o xaile gravado na
carne, como as chicotadas de prisioneiros de guerra nos campos-de-concentração… E o saco não se
esvaziava. O mundo é um grande saco cheio de injustiças, composto pelos sacos
de cada um dos homens. Parecia-lhe, a princípio, que todos desejariam acabar
com elas, com as injustiças. Pareciam-lhe que devia ser o fim belo do Homem,
fazê-las desaparecer. Parecia-lhe. Agora, que, em parte, podia contribuir para
o seu desaparecimento…
— Senhor Administrador…
A voz saiu, defeituosa, do
pequeno quadrado situado numa das pontas da secretária, cheio de botõezinhos.
Tinha passado meia hora, tinham passado trinta minutos. Mil e oitocentos segundos… Alguém queria ser recebido. Algum problema necessitava resolução. E
nada se fazia sem ele, sem o Senhor Administrador.
Levantou-se da cadeira de coiro
preto. Carregou num dos botões coloridos.
— Sim menina…
— É a mulher que insiste em
falar-lhe. quer um empréstimo para que o filho possa emigrar. Mas não tem
qualquer fiança. Já lhe disse que não há nenhuma possibilidade. Estou farta de
aguentar… Não queria incomodá-lo, mas as suas lamentações têm perturbado todo o
serviço… O que faço, Senhor Administrador?
Era, provàvelmente uma mulher de
carne de xaile que queria libertar-se das marcas dolorosas. Era uma mulher que
desejava, também, fazer-lhe desaparecer os vincos que lhe doíam ainda e
esvaziar-lhe, um pouco, o seu próprio saco.
— Eu recebo-a, menina. Eu trato
do assunto. Faça-a entrar e, quando ela sair, venha ao meu gabinete!
Eram dezassete horas e o Senhor
Administrador dava por findo o seu dia de trabalho. Eram cinco horas da tarde,
e o homem, mais homem, menos Senhor Administrador, sorriu para o motorista, de
boné na mão, como sorria aos outros inevitáveis inferiores-de-boné-na-mão por
que passara até chegar ao que lidava mais directamente com ele. Eram cinco
horas, e havia um homem que descobrira um mundo onde era possível mais do que o
trabalho de lidar com firmas impessoais, com papeis que não diziam nada do que
se passava à sua volta. Faltavam duas horas para um operário largar a sua obra.
Faltavam duas horas para um homem saber que a sua vida podia, ainda, receber um
impulso que lhe poderia fazer ganhar mais dinheiro para sustentar, em condições
próprias, a sua família.
Eram cinco horas e o ar estava
menos pesado.
8 de Junho de 1972
A Daisy, sabe alinhar as palavras. A sua escrita é um novelo, que o leitor vai desfiando num enredo de palavras simples, mas profundas.
ResponderEliminarMais de quarenta anos passaram sobre este prosar, inserido num livro de contos. Volta agora à ribalta pela mão do EG e do seu administrador que, em boa hora, vai desfolhando as páginas deste livro da escritora. Afinal, o dar corpo a um sábio pensamento de alguém que disse um dia : "um livro, fechado ou aberto, é sempre um amigo que sabe esperar" ...
Um abraço, Daisy
A verdadeira realidade contada com a conhecida qualidade da nossa amiga Daisy...
ResponderEliminarReligou-me ao meu já antiquíssimo local de trabalho,nas décadas de 60 e 70,a ESTACO.
E não é que era tal e qual como nos é relatado com a emoção da Daisy.
Emoção que também sentia e voltou essa emoção.
Tanta sensibilidade nesta escrita por ser a verdadeira realidade de então e que sentimos de novo actualmente...
Li com muita atenção este conto da Daisy. É dos melhores que li e já publiquei.
ResponderEliminarGostei muito
Um beijinho Daisy!
Por muito que raleie este texto, ficam-me sempre dúvidas quanto à intenção última da Autora.Penso que intencionalmente, dá-nos mais do que um caminho para a meta final. Pode-se dizer que deixa o enredo em aberto, tal como muitos autores utilizam esta figura "em aberto" para deixar ao leitor espaço para ele próprio utilizar a sua imaginação e fazer o "seu" final, tirar as "suas" conclusões.
ResponderEliminarNão é um texto fácil, nesta medida. Não deixa de ser, contudo e como sempre, uma delicia na fluidez da escrita e do romantismo social com que nos brinda.
Obrigado Daisy, um beijinho muito grande.
Obrigada, Daisy, por esta deliciosa leitura de um texto tão real e, em simultâneo, tão poético!
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