segunda-feira, 9 de maio de 2011

AMOR UTÓPICO


Envolveu sem pressa as curvas generosas do seu corpo com a toalha macia de feltro.Em movimentos suaves como carícias, aquela mulher voluptuosa ia secando a pele húmida, convidativa, nos mais recônditos lugares, com uma destreza que jamais nenhum amante seria capaz de fazer.
Fechou a janela para impedir que o vapor quente da água se escapasse da casa de banho.
Olhou o espelho que reflectia a sua imagem desde o rosto até um pouco abaixo da cintura.
A sua curiosidade feminina levou-a a deixar cair a toalha e observou-se demoradamente...
Com os olhos fixos no espelho perguntou-se mentalmente a si mesma o que procurava ela.

Algum enigmático segredo se mantinha oculto e inexplicado. Uma mulher era apenas aquilo que ela estava a ver? Um belo mas simples corpo? Um invólucro de nada? Não seria necessário redefinir as concepções de pecado, de amor, de humanismo, de vida?
Alguma célula mal concebida não estaria em falta ou perdida por um erro de paralaxe que tudo distorcia? Que estranho que ela se sentisse apenas e só aquilo que via!
A ígnea neblina do vapor de água ia tornando a imagem no espelho menos nítida. Sacudiu a cabeça, abandonou estes pensamentos e procurou os chinelos. Claro que não há mais nada, pensou conformada. Virou as costas ao espelho e saiu da casa de banho...

O espelho quis chamá-la, explicar-lhe. Ela não era só o que ele lhe mostrava na sua gelada e estática postura. Aquele corpo seria diferente, quando ela percebesse a verdade mais irrefutável. A verdade do amor que ela nunca teve...
Desgraçadamente, o espelho sofre o seu idílio sem esperança, a indiferença daquela bela mulher dói-lhe, mas a sua rigidez não a atrai. Todos os dias a vê, nua, apetecível, mas nada pode fazer. Será que ela não percebe que não é ele que a reflecte mas sim ela que o reflecte a ele?  

Se por dentro da sua superfície brilhante circulassem vasos sanguíneos, o espelho teria empalidecido quando, subitamente, a viu regressar à casa de banho de onde tinha acabado de sair. Teria ela percebido os seus pensamentos? Teria ouvido os seus sussurros? Teria compreendido o seu drama, o seu amor por ela? Inquietou-se, receoso mas esperançado.
Ouviu-a murmurar enquanto desligava o interruptor, que seria certamente por ela se esquecer tantas vezes de apagar a luz da casa de banho que a conta da electricidade era sempre tão alta no fim do mês.
Deixou o espelho na escuridão. Sem a sua imagem, sem pensamentos românticos, sem utopias, ele nada poderia agora reflectir. Tornou-se nada...
Voltou a ser uma massa fixa à parede sem objectivos, sem significado, como um peito vítreo, sem amor.

Foi então que todas as pequenas gotas do vapor de água começaram a deslizar pela face nua do espelho.
Como lágrimas...

Rui Felício

11 comentários:

  1. Uma forma de encaminhar as palavras, com a matriz muito própria do Rui Felício. Excelente a construção do texto. A criatividade do "diálogo" surdo entre uma mulher e um espelho, as perguntas e inquietações pertinentes e a "humanização" de um simples objecto. As gotas de vapor de água, convertidas em lágrimas, são a cereja no topo do bolo, neste texto que se lê e relê com interesse, em mais esta faceta da prosa do Rui, neste tema que nos propõe com a sua habitual e reconhecida apetência pela escrita. Gostei. Muito bem, como sempre nos acostumou ...
    Abraço, Rui

    ResponderEliminar
  2. Isto de ser espelho tem o que se lhe diga...

    ResponderEliminar
  3. As imagens que um espelho capta...os diálogos
    possíveis entre dois amores,o reflector e a reflectida...as lágrimas que se podem derramar ou os sorrisos que se podem soltar!
    Ai,Rui que lindo!
    A conta da electricidade até compensa com momentos como estes, "passados" ao espelho...

    ResponderEliminar
  4. E se os espelhos falarem num destes dias.
    Temos broncas das grandes.
    Tonito.
    Um abraço.

    ResponderEliminar
  5. Um texto inspirado em "A Branca de Neve"!
    Um final, sempre inesperado, salgado ...

    ResponderEliminar
  6. Sempre houve quem tivesse ciúme dos espelhos, esses receptores mudos e silenciosos de muitas confidências...
    Inesperado e inspirado diálogo impossível que, uma imaginação prodigiosa sempre permite. Gostei.

    ResponderEliminar
  7. O que posso dizer?
    Simplesmente uma delícia este teu texto!
    Claro que à frente do espelho só podia estar uma mulher!
    Não te estou a ver a desperdiçar tinta com um homem postado em frente de um espelho...

    ResponderEliminar
  8. O "espelho" não conseguiu sofrer tamanho tormento.
    Afogou-se em gotas de vapor...
    Antes aí que debaixo dum combóio-
    Um abraço.

    ResponderEliminar
  9. Eu sabia que há seres humanos que, pela sua ausência de sentimentos, são apenas "coisas".
    Um espelho era para mim, há uns minutos, uma simples "coisa".
    Afinal, não!
    Rui Felício demonstra-nos que o inverso também é verdadeiro, que uma "coisa" também pode sentir, sofrer, amar, até pode chorar.
    Confesso que só a muita consideração que tenho pela sua opinião me faz acreditar que assim será.
    Mas, mesmo assim, deixai-me confessar que fico com a minha certeza envolta numa ígnea neblina...

    Um abraço.

    ResponderEliminar
  10. Magnifico texto. Um exercício superado de um outro estilo literário do Rui. Ele faz o que quer das palavras! Sabe ser sarcástico, ser poético, ser filosófico , ser "non sense", mas sempre com uma enorme habilidade no arrumo das palavras.

    ResponderEliminar
  11. Um espelho normal, sem maior interesse do que outro mas a que o Rui Felício pela sua pena deu vida. Quando a creatividade passa além do real, lemos artigos desta qualidade.

    ResponderEliminar