Chove muito, em bátegas...
Do longínquo sitio de onde vim com a minha família não chove nunca...
Observo deleitado a água a escorrer em pequenas bolhas do lado de fora da janela, a desenhar no vidro figuras fantasmagóricas que a minha imaginação vai traduzindo...
Porque será que eu gosto tanto de ver chover? Talvez porque ache que são lágrimas do céu a lavar a terra, a limpar e a dissolver as impurezas da sua crosta doente.
Olho os pássaros, felizes, abrigados na copa das árvores, de vez em quando a espanejarem-se para sacudirem as gotas de água que lhes deslizam pelas penas.
É tudo tão bonito! Mas eu só posso apreciar essa beleza por trás da janela. Não me deixam sair...
Ai como eu gostava de experimentar a sensação da água purificadora no meu corpo! Mas estou proibido!
Os meus pais, esses, saem de vez em quando, protegendo-se com uma capa de plástico, mas a mim não me deixam ir com eles!
Dizem que tenho de estar de quarentena...
Argumentam que ainda sou demasiadamente jovem para enfrentar os perigos do exterior.
Especialmente depois do ataque virulento a que fui sujeito quando os homens deixaram fundir os núcleos das obsoletas e primitivas centrais nucleares...
Não querem que me arrisque a contrair alguma nova doença grave...
Como eu anseio correr pelos campos como fazem aqueles animais que por vezes assomam perto da minha janela. Parecem tão livres, tão felizes! Mas cada vez aparecem menos...
Os mais velhos sempre inventaram regras que aos olhos dos jovens parecem estúpidas, com o discutível argumento de que o fazem para nosso bem, para nosso resguardo.
Talvez se os adultos não tivessem tanto medo de nós, da nossa impulsividade, se confiassem mais na nossa sinceridade, na nossa inteligência e na nossa alegria de viver, tudo seria mais fácil.
Quando os meus pais regressam, têm um ar divertido e feliz. Nem reparam na minha melancolia, na minha revolta contida por não me deixarem sair...
Mas reconheço que o vírus que me atacou é agressivo e tem que ser contido. E que a minha inexperiência me pode expor em demasia aos perigos que espreitam lá fora.
Sou obrigado a reconhecer a necessidade da quarentena.
Porém, como eu gosto da chuva! Gosto dela porque é livre, porque desce do céu quando quer, sem constrangimentos nem obrigações, sem nada que a impeça de correr pelos descampados...
Quando eu crescer, vou me vingar de todo este tempo enclausurado, vou usufruir de toda a liberdade que agora me é negada.
Enquanto isso não me for permitido, continuarei a apreciar esse fenómeno belo que é a água a cair do céu.
Olhando-a por trás da vidraça da nave que me trouxe de Marte e que me aprisiona, pairando a poucos metros do chão...
Como reagirá a minha pele verde e viscosa, pela qual até hoje nunca passou água, quando as gotas da chuva deslizarem sobre ela?
Rui Felício
A razão deste texto impõe uma explicação.
ResponderEliminarQuando eu tinha 9 anos contraí a difteria, doença perigosa e extremamente contagiosa que me obrigou a ficar de quarentena durante 3 meses, em casa.
Nunca esquecerei o professor, que dava aulas no Bairro e morava em Miranda do Corvo, que , apesar disso, depois das aulas da escola, vinha a minha casa, todos os dias, para me manter as lições actualizadas.
Naquela idade, ter estado encarcerado durante tanto tempo, foi coisa que nunca se apagou da minha memória.
As sensações sentidas então, tentei transportá-las, por analogia, para estas linhas que escrevi...
A escrita do Rui Felicio, navega entre a realidade e a fantasia. No caso em apreço, de uma preocupante realidade vivida na infância, a sua criatividade permitiu-lhe desenhar uma outra realidade, no reino de uma fantasia marciana. Saúdo o Felício por mais este texto. E saúdo-o, muito particularmente, por continuar a colaborar com os seus belos escritos neste blogue, que o Fernando Rafael, em boa hora, decidiu criar. Naturalmente que me é dificil indicar todas as virtulidades da escrita do Felício, correndo o risco de ser acusado de uma cortesia protocolar. Mas o Felício sabe que não é assim. A nossa amizade permite-me, se não gostasse, de lho dizer, mesmo que fosse particularmente. Talento e criatividade, são dois dos atributos da prosa do Felício. E estou certo que muitos amigos, corroboram desta minha opinião ...
ResponderEliminarAbraço
A recordação de uma estória real reflectida em extra-terrestres mostra-nos bem a tristeza da criança, neste caso o Rui Felício, que teve de estar de quarentena. Não lhe faltou a esperança numa gota de água a deslizar no vidro para o purificar das impurezas que lhe traziam o sofrimento. Por outro lado o seu comentário também nos mostra a dedicação de certos professores à arte que abraçaram e que é das profissões em que muitos ainda hoje o fazem com devoção.
ResponderEliminarEste texto, que estava desaparecido em combate, voltou em boa hora.
ResponderEliminarJá o tinha lido bem assim como um comentário do próprio autor que nos esclarecia que a inspiração para a estória que nos conta tinha nascido de uma verdadeira quarentena a que foi obrigado em criança.
Confesso que não memorizei a classificação clínica qque motivou a quarentena.
Uma coisa me ficou, no entanto, na memória. A fantástica capacidade de imaginação em que se transforma uma recordação de infância numa deliciosa transformação para o mundo extra-terrestre.
Rui Felício, o nosso ET !
Um grande abraço.
Como sabes,Rui,gosto muito dos teus textos.
ResponderEliminarCada um lê-o à sua maneira.
Este transportou-me até aos meus 17/18 anos.
Gostava da chuva e de ficar encharcado com a chuva.
A minha namorada de então,talvez por simpatia,também gostava.
Para mim,o bom,o máximo,era namorar à chuva!
Sabes que há uma teoria,na área da origem da espécie,que diz que nós,os humanos,descendemos de uma espécie de lagarto??!!
Bom fim de semana.
Um abraço.
A recordação de uma estória real reflectida em extra-terrestres mostra-nos bem a tristeza da criança, neste caso o Rui Felício, que teve de estar de quarentena como explicou no seu comentário de ontem. Não lhe faltou a esperança numa gota de água a deslizar no vidro para o purificar das impurezas que lhe traziam o sofrimento. Por outro lado o seu comentário também nos mostrava a dedicação de certos professores à arte que abraçaram e que é das profissões em que muitos ainda hoje o fazem com devoção.
ResponderEliminarUm abraço
Não sei bem se este texto do Rui Felício é o original e foi reposto pelo Bloger ou se foi o Rui que o repôs.
ResponderEliminarPenso que o original já teria comentários.
Seja como fôr temos assim a possibilidade de ler ou reler mais este excelente texto!
A reposição foi feita pelo Blogger e não por mim, embora não tenha sido feita a reposição dos comentários que, na altura do "crash" sucedido, já tinham sido feitos.
ResponderEliminarEu próprio tinha feito um para explicar a razão de ser desta ficção que escrevi por analogia com a situação de quarentena de 3 meses a que estive sujeito quando tinha 9 anos de idade, por ter sido atacado por uma doença altamente contagiosa: a difteria.
E recordei também, nesse comentário que o meu Professor que dava aulas na escola do Bairro, me visitava diáriamente em minha casa, findas as aulas, para me manter as lições actualizadas.
Esse professor, só depois disso regressava a sua casa em Miranda do Corvo onde vivia.
São coisas que nunca esquecem...
Um Abraço.
ResponderEliminarTonito.
Depois de ler um texto destes, uma musiquinha se impunha!"BRIDGE OVER TROUBLED WATER" dos Simon & Garfunkel! E foi o que fiz!
ResponderEliminarNo ano em que casei (1973)percorri Portugal de norte a sul, com a minha querida Elisabeth!Vocês nem imaginam a delicia que era aquela chuva miudinha batendo no tecto da nossa canadiana!!
Havia muito romantismo naquele século! Certo, as guitarras ajudaram muito mas estavamos mesmo impregnados de romantismo primitivo!!!Uma seduçao que jà se tornava raro nos outros paises e onde jà reinava o "tu veux ou tu veux pas?"!!
Nos iamos là com preliminares musicais!!Sucesso garantido!
Difteria, era isso!
ResponderEliminarQue grande salto para se chegar ao ET...
É preciso, de facto, muita imaginação e muita arte de bem escrever.
Uma difteria, os cuidados dos pais, a dedicação de um professor, o valor da liberdade, o prazer do contacto com os elementos da Natureza, a quarentena vivida...
ResponderEliminarImaginação a rodos, até Marte!
Mais um texto com a assinatura de Rui Felício.