sábado, 22 de setembro de 2012

LAVAGEM AO CÉREBRO



Com quatro bocas para sustentar lá em casa, as contas da luz, da água e do gás, a prestação do frigorifico para pagar, o Mário, pedreiro nas obras, já não sabia o que fazer para esticar o ordenado que recebia ao fim de cada mês. Ganhava 750 euros brutos. Descontados os impostos e as contribuições, ficava com 652 euros. Já estava endividado até aos cabelos na mercearia do bairro e o dono ameaçava-o de lhe cortar os fiados.

Balouçando-se na luxuosa poltrona do seu escritório, o patrão deu-lhe uma ensaboadela mental quando ele lhe foi pedir aumento de ordenado:

Suponha o meu amigo que eu lhe dava mais 100 euros por mês. Você ao fim de um mês ou dois começava logo a mirar com olhos de cobiça o emprego de um seu vizinho que ganhasse mais 100 ou 200 euros, punha-se a meter cunhas, incomodava-se a revolver céu e terra, a traficar influências junto do Presidente da Junta, quem sabe do Presidente da Câmara, e, para azar seu, acabavam por lhe arranjar um lugar numa empresa municipal, como fiscal de obras.
Davam-lhe 1.200 euros por mês, mas você ficava a perder. Agora estava nas mãos deles, tinha que votar em quem eles lhe mandassem. E o dinheiro que lhe davam,  parecendo muito, era realmente menos do que aquele que eu lhe pago.
Naquele cargo, tinha que passar a conviver com engenheiros, doutores, políticos. Era obrigado a apresentar-se decentemente vestido, tinha que manter na moda o guarda-roupa da sua mulher, mandá-la ao cabeleireiro uma vez por semana e os seus filhos não podiam ir para a escola com os ténis rotos.
Entretanto ia deitando o olho a um cargo mais vantajoso. Seria chefe de um qualquer serviço da Câmara, daqueles onde se trabalha pouco e se ganha melhor. Em pouco tempo iria sentir no corpo a doença do sedentarismo por falta da actividade física que, para seu bem, tem a sorte de praticar na minha empresa. Com a inacção física, viria a doença de que sofrem tantos anémicos, entorpecidos e balofos que por lá andam. E que já só comem por desfastio. Qualquer leve corrente de ar lhe traria uma pneumonia, uma ponta de sol mais quente um aneurisma cerebral. Você faz ideia do dinheirão que ia gastar para se tratar?
Não me agradeça, amigo Mário. Mas em defesa da sua saúde e da sua vida, não lhe devo  aumentar o ordenado.

Tem razão! Nunca tinha pensado nisso...Obrigado, patrão! – agradeceu o Mário com uma vénia...

Rui Felicio

11 comentários:

  1. Patrão amigo!... E não lhe disse que teria de pagar mais IRS e mais TSU!... Esse patrão faz-me lembrar alguém que ultimamente anda muito na boca do povo!... Quando as coisas são bem explicadas o povo come tudo!!! (Esta última frase é do Isaltino Morais)

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    1. Há quem deteste bacalhau cozido recusando-se a comê-lo.
      Mas achará divinal e um pitéu se esse mesmo bacalhau estiver escondido sob a forma de pasteis de bacalhau.
      Isaltino serviu-se desta imagem para demonstrar aos que o ouviam que "todo o burro come palha, é preciso é saber dar-lha".

      Passou-se isto na inauguração do Tagus Park, construido sob os auspicios e o interesse pessoal do Isaltino, em terrenos afectos no Plano Director ao equilibrio ambiental urbanistico onde estavam inseridos, como zona "non aedificandi".

      A sua "esperteza saloia" já vem de longe...

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  2. Saúdo o Rui Felício pelo seu regresso, na vertente da escrita, a este espaço de amigos.
    Não será por acaso, que por vezes ouvimos aquela frase bizarra em relação aos portugueses: "pobretes, mas alegretes". O tal fado, em que se dedilha o destino de uma camada cada vez mais significativa da população.
    A capacidade argumentação do patrão, resvala para a pena do autor e do seu reconhecido mérito de recrear situações burlescas ou,até, roçando realidades do quotidiano. Porque, por mais inverosímil que possa parecer,haverá quem seja capaz deste tipo de discurso, valendo-se da incapacidade e fragilidade dos mais humildes.
    Por outro lado, existe uma casta de "trabalhadores" no sector público e privado, que vivendo de ordenados absolutamente obscenos ( caso de jornalistas da TV com 15 OOO euros de ordenado mensal), vêm os seus "méritos" serem reconhecidos, porque, imagine-se, necessitam de cuidar da aparência e de renovar com assiduidade o seu vestuário, nomeadamente "elas". E assim vamos vivendo. Uns, usufruindo com proventos que mais não são, que a falta de pudor de quem lhes paga. Outros, acotovelando-se nos Centro de Emprego na luta pela sobrevivência, nesta chafurda em que infelizmente vamos vivendo ...
    Abraço, Rui

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    1. A capacidade argumentativa é um dom inato que pode ser aperfeiçoado por técnicas de metodologia mental e que é louvável quando tende a defender ideais e justos principios.

      Quando essa capacidade é usada intencional e malevolamente em prejuizo de outrem, é mera e condenável retórica, aproveitando a boa fé ou fragilidade do destinatário.

      Obrigado Quito, pelo teu clarividente comentário e amáveis palavras.

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  3. A sedução do patrão saliente neste retrato de hoje e de sempre...e não é que resulta? Infelizmente.
    Boa reflexão como já é característica do Rui Felício.

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  4. Com a boa fé somos sempre lichados.
    E estamos todos bem tramados.
    ACHO EU.

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  5. É um texto que dá muito para pensar!!
    Será que que esta maneira de desmontar um possivel aumento de ordenado, faz parte de algum manual para patrões?
    Temos, ou tenho que concordar, que a argumentação foi absolutamente eficaz!
    Acabou num "muito obrigado", com dispensa de agradecimento ao patrão!!!!

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  6. Com a sua mestria, Rui Felício traz-nos aqui o quadro típico do trabalhador explorado por um patrão sem escrúpulos. Às dificuldades do Mário para fazer face às mais elementares necessidades, responde com a matreirice própria de quem tem como único interesse da vida olhar para o seu próprio umbigo.
    É um quadro triste, revoltante até, mas real.
    Melhor dizendo, foi um quadro real durante muitos anos.
    Hoje, o Mário não se atreveria a pedir aumento de ordenado e, se o fizesse, o patrão limitava-se a apontar-lhe a porta da rua dizendo-lhe que tem um comboio de trabalhadores dispostos a aceitar o trabalho por um salário até mais baixo do que o dele.
    As transformações das leis laborais, do chamado código de trabalho, conciliadas entre os últimos governos e os chamados parceiros sociais, tem permitido o retorno a um passado sinistro.
    É com revolta que o digo: O Mário era um homem com sorte...

    Para o Rui Felício, um abraço, aquele abraço.


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    1. O Carlos Viana tem razão. Infelizmente.
      Na verdade, quando o Estado não só se demite das suas obrigações mas, pior do que isso, retira propositadamente as garantias de direitos básicos através de legislação laboral que deixa ao livre arbitrio de patrões sem escrúpulos a decisão de usar seu bel-prazer a força do trabalho segundo os seus mesquinhos e interesseiros critérios, ao trabalhador resta-lhe apenas o dilema de escolher entre sobreviver com grandes dificuldades ou simplesmente morrer.
      Por isso Carlos Viana diz que o Mário até tinha sorte...

      Vem me à memória o que se passava há meio século atrás nos largos das vilas e cidades das regiões de latifundio em Portugal em que os trabalhadores diariamente, numa espécie de mercado de escravos, mendigavam o favor de uns dias de trabalho em condições ditadas por quem deles precisava e que nem se atreviam a discutir ou negociar.
      Também então, o dilema era o mesmo:
      Sobreviver ou morrer...


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  7. Adorei este texte que se pode referir a muitos patrões por este mundo fora.
    Agora compreendo porque é que vejo imensa gente mal vestida quer seja na rua ou no trabalho e plenos de tatuagens, pelos vistos para se defenderem do sol.
    Tenho o hábito de passar amiudadas vezes na biblioteca nacional do Quebec e só numa secção existe umas dezenas largas de computadores, só para os desempregados poderem procurar emprego.
    Fiquei admirado do Mário não ter um sindicato para olhar pelos seus interesses. Enfim, é o país que temos.

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  8. O patrão deve ter subido na vida com as cunhas dos " presidentes"!...
    Era assim e lamento o facto de estarmos a regredir até ao antigamente, até aos tempos do Mário.

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