É um homem triste e calado. Adivinho-lhe no rosto, um passado
sofrido. Ali, naquela berma de estrada, quando a fita de alcatrão desce para a
ponte sobre o Rio Ocreza, vejo-o atrás do balcão do seu pequeno restaurante. Várias
vezes, ali almocei. Estranhamente, pouco ou nada conversámos. Nunca lhe
perguntei o nome. O seu mutismo, o seu aspeto sombrio, fez-me respeitar a sua
solidão. Um dia, apercebi-me que tem um menino que é igual aos outros meninos, mas
que padece de uma doença sem cura. Ele, o homem sem nome, não sei se tem
companheira. Mas admito que o auxilie na cozinha, confecionando os pratos
escolhidos pelos clientes. É um outro rosto sem nome. Silencioso, em passos de
veludo, vai percorrendo as mesas, colocando pratos, talheres, copos e servindo
cafés. Depois, faz a conta na frente dos fregueses, com uma caneta negra de
ponta de feltro, com que risca a toalha branca em papel. No fim, sempre a
“prova dos nove”, naquele expediente que nos ensinaram na escola primária, em tempos
de antanho. Estão sempre certas, as contas, e o resultado final do repasto,
nunca é de molde a empobrecer ninguém.
Aquele era o último troço projetado do lanço entre
Proença-a-Nova e o Perdigão. Os dezasseis quilómetros que faltavam. Abriu há
dias, sem estrondo ou discursos de circunstância. A nova
estrada, de alcatrão liso e painéis de informação reluzentes, faz agora a
delícia dos que por ali diariamente labutam na região. Ou dos que rumam a
Coimbra, na procura da sua cidade – natal. Ou ainda, dos que demandam os
Hospitais da Universidade, na esperança do remédio para os seus males, poupando
tempo significativo de viagem.
Mas há sempre o reverso da medalha. A antiga estrada, povoada
de lugarejos desertificados, ficará ainda mais pobre, esquecida e só.
E hoje, ao ler a notícia do novo melhoramento rodoviário, num
jornal da cidade, dei comigo a pensar no homem sem nome, que vivia e vive da
passagem dos seus clientes, na sua maioria profissionais do volante e que, por
uma questão de rapidez e conforto, utilizarão agora a nova via, almoçando por
outras paragens.
Afigura-se-me sombrio, o futuro do pequeno restaurante. E o homem sem nome, a quem a vida nunca sorriu, porque se percebe no inverno do seu olhar, teve mais uma cilada no seu caminho acidentado e pedregoso. E o bolo – rei, que venderá à fatia, da sua vitrina cuidadosamente limpa e discreta, terá certamente no futuro, um sabor muito amargo.
Sinal dos tempos, caro amigo Quito! Retratas bem...um dos muitos restaurantes que "deixaram de estar no mapa"...deste País! Recordo o Boa Viagem na Mealhada, que era uma referência gastronómica!!??? Julgo que já nem existe! Abraço.
ResponderEliminar"Mataram" esse restaurante quando fizeram o IC2, que passa ao lado e obriga a um desvio.
EliminarAgora, é um outro restaurante, que nada tem a ver com o »Boa Viagem».
Quito, tens mensagens para ti "lá em cima", no blog. Despacha-te, pá!
ResponderEliminarAssim se acaba o quotidiano do homem sem nome porque o progresso não se compadece com os que labutam anónimamente...
ResponderEliminarQue alternativas poderiam ter sido negociadas??? Eu não sei.
Mas sei que um homem destes não vai cruzar os braços...daquela cabeça sairá uma ideia que o faça ser ainda feliz!
Assim o desejo e a solidariedade da gente da terra também contará.
"Amputada" emocionalmente me sinto por casos como estes...
A travessia transversal do País, numa região que durante anos e anos viveu isolada por causa da falta de vias de comunicação rápidas entre o litoral e a fronteira, é uma boa notícia.
ResponderEliminarInfelizmente, sabemos que não foi desenhada e construida a pensar nas populações beirãs que labutam no nosso interior.
Longe disso!
Sabemos que esta, como muitas das vias rápidas e auto estradas, que agora cruzam o território, foram uma prioridade e exigência da União Europeia para mais rapidamente colocarem no nosso litoral os produtos que simultâneamente tiveram o cuidado prévio de eliminar da nossa produção.
A troco de subsidios, incentivaram o abandono das explorações vinicolas, de pomares e cerealificas,
promoveram o abate de barcos de pesca, impuseram-nos quotas de produção de leite, e consequentemente, de lacticinios,dado que a França e a Alemanha os tinham em excesso e precisavam de mercado para o seu escoamento.
A bem da propalada coesão!
Ou, melhor dito, dos seus interesses...
E assim os nossos supermercados passaram a oferecer-nos frutas e horticulas espanholas, leite e derivados franceses, peixe e marisco da Galiza, azeitonas da Andaluzia, vinhos da Baviera e de Bordéus, enchidos de Jerez, presunto de Jabugo, laranjas de Valência, embarcados no próprio dia ou no dia anterior em grandes camiões TIR que atravessam agora as nossas regiões a alta velocidade.
Esqueceram-se, ou não se quiseram lembrar, da destruição do pequeno comércio das estradas, por onde agora não passa ninguém.
O caso que o Quito nos conta é paradigmático e repetiu-se ao longo dos últimos anos de Norte a Sul.
Como ele diz, é o reverso da medalha. Mas nem por ser um reverso é menos importante.
Porque nenhuma medalha é feita de uma só face...
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Obrigado Quito por nos trazeres um tema tão importante como este, ao qual, curiosamente comecei a rascunhar umas linhas que não cheguei a recompor e publicar, longe de adivinhar que o ias tratar desta forma seguramente mais apelativa do que aquela de que eu teria sido capaz de conseguir...
Eu acho que esta tudo bem.
ResponderEliminarO nosso Primeiro ate diz que já à luz ao fundo do túnel.
Concordo plenamente,mas a luz que aparece nesse túnel é dum comboio que vem a grande velocidade para nos trucidar a todos.
" Um homem sem nome"!
ResponderEliminarTriste, logo numa primeira abordagem do texto.
Continuando a leitura, a tristeza adensa-se e os factos reais deixam-nos uma sensação de impotência.
Mas depois resta-nos a esperança que são pessoas de têmpera, capazes de virar a página e seguir em frente.
Acreditemos.
Como sempre, Quito, uma análise bem feita com um texto muito bem escrito.
ResponderEliminarE o Tonito remata dizendo bem o que nos espera.
Que vamos fazer? Cruzar os braços?
Gostava de ter respoatas
Ló
É um texto com a marca do Quito. O Quito, não olha para a superfície das coisas antes procura ver o que se encontra no porquê que elas contêm.
ResponderEliminarEste homem amargurado de que nos fala poderá, talvez, reorganizar a vida sem perder a esperança. Mas quem se importará em querer quebrar aquele mutismo e dar um sorriso aquele rosto? Tenho a certeza, que o Quito um dia ainda por ali passará para ali almoçar e dar vida e esperança aquele homem que em cada dia carrega o desânimo e a tristeza dum tempo sem futuro.