quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

O HOMEM SEM NOME ...


É um homem triste e calado. Adivinho-lhe no rosto, um passado sofrido. Ali, naquela berma de estrada, quando a fita de alcatrão desce para a ponte sobre o Rio Ocreza, vejo-o atrás do balcão do seu pequeno restaurante. Várias vezes, ali almocei. Estranhamente, pouco ou nada conversámos. Nunca lhe perguntei o nome. O seu mutismo, o seu aspeto sombrio, fez-me respeitar a sua solidão. Um dia, apercebi-me que tem um menino que é igual aos outros meninos, mas que padece de uma doença sem cura. Ele, o homem sem nome, não sei se tem companheira. Mas admito que o auxilie na cozinha, confecionando os pratos escolhidos pelos clientes. É um outro rosto sem nome. Silencioso, em passos de veludo, vai percorrendo as mesas, colocando pratos, talheres, copos e servindo cafés. Depois, faz a conta na frente dos fregueses, com uma caneta negra de ponta de feltro, com que risca a toalha branca em papel. No fim, sempre a “prova dos nove”, naquele expediente que nos ensinaram na escola primária, em tempos de antanho. Estão sempre certas, as contas, e o resultado final do repasto, nunca é de molde a empobrecer ninguém.
Aquele era o último troço projetado do lanço entre Proença-a-Nova e o Perdigão. Os dezasseis quilómetros que faltavam. Abriu há dias, sem   estrondo ou discursos de circunstância. A nova estrada, de alcatrão liso e painéis de informação reluzentes, faz agora a delícia dos que por ali diariamente labutam na região. Ou dos que rumam a Coimbra, na procura da sua cidade – natal. Ou ainda, dos que demandam os Hospitais da Universidade, na esperança do remédio para os seus males, poupando tempo significativo de viagem.
Mas há sempre o reverso da medalha. A antiga estrada, povoada de lugarejos desertificados, ficará ainda mais pobre, esquecida e só.

E hoje, ao ler a notícia do novo melhoramento rodoviário, num jornal da cidade, dei comigo a pensar no homem sem nome, que vivia e vive da passagem dos seus clientes, na sua maioria profissionais do volante e que, por uma questão de rapidez e conforto, utilizarão agora a nova via, almoçando por outras paragens.


Afigura-se-me sombrio, o futuro do pequeno restaurante. E o homem sem  nome, a quem a vida nunca sorriu, porque se percebe no inverno do seu olhar, teve mais uma cilada no seu caminho acidentado e pedregoso. E o bolo – rei, que venderá à fatia, da sua vitrina cuidadosamente limpa e discreta, terá certamente no futuro, um sabor muito amargo.
Quito Pereira       

9 comentários:

  1. Sinal dos tempos, caro amigo Quito! Retratas bem...um dos muitos restaurantes que "deixaram de estar no mapa"...deste País! Recordo o Boa Viagem na Mealhada, que era uma referência gastronómica!!??? Julgo que já nem existe! Abraço.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. "Mataram" esse restaurante quando fizeram o IC2, que passa ao lado e obriga a um desvio.
      Agora, é um outro restaurante, que nada tem a ver com o »Boa Viagem».

      Eliminar
  2. Quito, tens mensagens para ti "lá em cima", no blog. Despacha-te, pá!

    ResponderEliminar
  3. Assim se acaba o quotidiano do homem sem nome porque o progresso não se compadece com os que labutam anónimamente...
    Que alternativas poderiam ter sido negociadas??? Eu não sei.
    Mas sei que um homem destes não vai cruzar os braços...daquela cabeça sairá uma ideia que o faça ser ainda feliz!
    Assim o desejo e a solidariedade da gente da terra também contará.
    "Amputada" emocionalmente me sinto por casos como estes...

    ResponderEliminar
  4. A travessia transversal do País, numa região que durante anos e anos viveu isolada por causa da falta de vias de comunicação rápidas entre o litoral e a fronteira, é uma boa notícia.
    Infelizmente, sabemos que não foi desenhada e construida a pensar nas populações beirãs que labutam no nosso interior.
    Longe disso!

    Sabemos que esta, como muitas das vias rápidas e auto estradas, que agora cruzam o território, foram uma prioridade e exigência da União Europeia para mais rapidamente colocarem no nosso litoral os produtos que simultâneamente tiveram o cuidado prévio de eliminar da nossa produção.

    A troco de subsidios, incentivaram o abandono das explorações vinicolas, de pomares e cerealificas,
    promoveram o abate de barcos de pesca, impuseram-nos quotas de produção de leite, e consequentemente, de lacticinios,dado que a França e a Alemanha os tinham em excesso e precisavam de mercado para o seu escoamento.
    A bem da propalada coesão!
    Ou, melhor dito, dos seus interesses...

    E assim os nossos supermercados passaram a oferecer-nos frutas e horticulas espanholas, leite e derivados franceses, peixe e marisco da Galiza, azeitonas da Andaluzia, vinhos da Baviera e de Bordéus, enchidos de Jerez, presunto de Jabugo, laranjas de Valência, embarcados no próprio dia ou no dia anterior em grandes camiões TIR que atravessam agora as nossas regiões a alta velocidade.

    Esqueceram-se, ou não se quiseram lembrar, da destruição do pequeno comércio das estradas, por onde agora não passa ninguém.
    O caso que o Quito nos conta é paradigmático e repetiu-se ao longo dos últimos anos de Norte a Sul.
    Como ele diz, é o reverso da medalha. Mas nem por ser um reverso é menos importante.
    Porque nenhuma medalha é feita de uma só face...

    ----

    Obrigado Quito por nos trazeres um tema tão importante como este, ao qual, curiosamente comecei a rascunhar umas linhas que não cheguei a recompor e publicar, longe de adivinhar que o ias tratar desta forma seguramente mais apelativa do que aquela de que eu teria sido capaz de conseguir...

    ResponderEliminar
  5. Eu acho que esta tudo bem.
    O nosso Primeiro ate diz que já à luz ao fundo do túnel.
    Concordo plenamente,mas a luz que aparece nesse túnel é dum comboio que vem a grande velocidade para nos trucidar a todos.

    ResponderEliminar
  6. " Um homem sem nome"!
    Triste, logo numa primeira abordagem do texto.
    Continuando a leitura, a tristeza adensa-se e os factos reais deixam-nos uma sensação de impotência.
    Mas depois resta-nos a esperança que são pessoas de têmpera, capazes de virar a página e seguir em frente.
    Acreditemos.

    ResponderEliminar
  7. Como sempre, Quito, uma análise bem feita com um texto muito bem escrito.
    E o Tonito remata dizendo bem o que nos espera.
    Que vamos fazer? Cruzar os braços?
    Gostava de ter respoatas

    ResponderEliminar
  8. É um texto com a marca do Quito. O Quito, não olha para a superfície das coisas antes procura ver o que se encontra no porquê que elas contêm.
    Este homem amargurado de que nos fala poderá, talvez, reorganizar a vida sem perder a esperança. Mas quem se importará em querer quebrar aquele mutismo e dar um sorriso aquele rosto? Tenho a certeza, que o Quito um dia ainda por ali passará para ali almoçar e dar vida e esperança aquele homem que em cada dia carrega o desânimo e a tristeza dum tempo sem futuro.

    ResponderEliminar