Há um vento - norte, que assobia por entre as vielas frias e
sombrias da aldeia perdida na crista da serra. Ali, é terra de ninguém. Apenas
ele, o vento, trespassa aquela muralha de solidão. Por vezes, vem de mansinho,
batendo ao de leve na porta de madeira envelhecida, da casa do António Julião.
Lá dentro, há uma luz pálida, que brota da lareira. O estalar dos ramos secos,
a gemer ao capricho da chama acolhedora, é ambiente propício para um desfiar de
memórias. Na cozinha tosca, uma arca. Dentro da arca, os panos de linho, com
que se enfeitava a mesa, em dias de receber o Compasso. Era sempre assim, no
dia de Páscoa. Na frente do cortejo, o sacristão, de opa vermelha, levantando
ao alto, um luzidio crucifixo. Ao lado, um rapaz, de opa branca, que agitava
com vigor uma sineta. E atrás, o abade, de faces coradas do esforço de tanta
andança pelos lugares da região, que se apressava a penetrar nas moradias
humildes, atapetadas à entrada por uma carpete de flores.
Agora, tudo acabou. Os tempos mudaram. Apenas os ventos da
montanha, é que não. Continuam a visitar o povoado, mas não trazem notícias
novas do país. Nem notícias de ninguém. Ele, o Julião, vive sozinho. Há muito
que a mulher, descansa em paz por entre os muros brancos do Campo Santo. Um
dia, depois de muito meditar, quis refazer a vida. E foi no arraial da aldeia,
nas voltas e reviravoltas da dança, que as suas mãos se entrelaçaram nos dedos
finos da Amélia. O seu coração reabriu-se num sobressalto e, de longe,
apreciava o seu andar gracioso, quando ela, de cântaro à cabeça, se acercava da
fonte jorrante de água cristalina. Um dia, no átrio da igreja, resguardados pela
sombra da velha torre - sineira, ele declarou-lhe o seu amor. Ela, porém, de
olhos fixos no chão, recusou. Ele, contudo, percebeu que uma nova investida
derrubaria aquela muralha de gelo e, tempos mais tarde, num Domingo
prazenteiro, com os sinos a repicar no silêncio da montanha, casaram.
Durante dois anos, António Julião viveu com Amélia um rio de
afetos e de bonança. Até ao dia em que, na festa da aldeia, de novo nas voltas
e reviravoltas da dança, os olhos de Amélia se prenderam nos botões amarelos de
latão, de uma farda cinzenta. Ele, o Arménio, tinha sido destacado em serviço,
para prevenir qualquer desacato no arraial. Mas, em desacato, ficou também o
seu coração. Depois, o caudal era cada vez mais forte, naquele rio de paixão e
de murmúrios. Amélia, arranjava todos os pretextos para ir à Vila e, um dia,
não voltou. Arménio, também não regressou ao posto da Guarda Republicana e
ambos partiram sem deixar rasto.
Julião, ficou outra vez só. A humilhação, os olhares do povo, as conversas surdas das mulheres no lavadouro público da aldeia, fizeram-no refugiar-se em casa. É ao fim da tarde, caminhando rente aos muros, que parte para a courela, onde semeia e colhe o seu sustento.
À noite, com o “Traquina” como companhia, um gato negro de
olhar inquieto, que o observa acocorado por debaixo da mesa escura, Julião
revisita o passado, entalado entre dois mundos de cogitações. O de Alice, a sua
fiel companheira, que um dia partiu. E o de Amélia, a mulher infiel, que, numa
tarde de primavera, também partiu. No meio daquele caldeirão a ferver de tanto
desalento e desventura, já nada resta.
Apenas o vento - norte, parece aliar-se ao seu longo meditar, e de novo lhe bate à porta de mansinho …
Quito Pereira
foto de São Vaz
foto de São Vaz
Este conto, não tem qualquer suporte real.
ResponderEliminarA foto é da São Vaz .
Adjectivação apropriada, humanismo, tom dramático, desespero pela ausência de novas que nem o vento aporta, são os condimentos que temperam o retrato neo-realista que o Quito desenha da montanha, da sua rudeza e das suas tradições populares, com ele emoldurando a vida de um homem solitário, entalado entre as recordações antagónicas das duas mulheres que com ele partilharam parte da sua existência.
ResponderEliminarDiz-nos o Autor que o conto é uma ficção.
Para mim, isso é uma maior valia, porque, tal como na música, na dança, ou na pintura,também na literatura, entendo que a verdadeira Arte é sempre resultado da imaginação, da inspiração e da capacidade do Autor de a revelar de forma intelegivel e aliciante.
E o Quito Pereira tem esse dom, tem essa capacidade.
Tão real e convincente nos parece essa revelação, essa ficção, que facilmente a teriamos como verdadeira se o Autor não nos tivesse avisado que a história não tem suporte real.
Bem urdido este conto!Dizes que não tem qualquer suporte real!É ficção!
ResponderEliminarMas tem tudo para ser um conto de vida real!Passa pela Páscoa na visita Pascal em que me revejo, pois durante anos também calcorreei aldeias da minha freguesia de São Miguel, tocando a sineta para avisar que a cruz estava na aldeia, o sacristão com a opa vermelha a dar a beijar aos familiares, enquanto a o pároco espargia água benta sobre os presentes " o senhor esteja convosco, Feliz Páscoa" e a moeda era retirada de cima da laranja.Havia sempre uma bebida, amendoas e um doce, para quem acompanhava!A entrada da casa estava
devidamente assinalada com alecrim.
Quanto ao amor do António Julião pela Amélia foi sol de pouca dura...talvez diferença de idades...só o tempo de aparecer à Amélia o seu principe encantado e lá partiram para novas paragens e o Julião continuou a tratar das suas courelas!E a vida continuou...
Meu grande amigo Quito estava na hora de reunir todos estes contos em Livro, pensa nisso e eu trato de tudo, se calhar muitos de nos gostaríamos de ter todos eles reunidos na mesma obra....
ResponderEliminarGrande abraço
Pedro Sarmento
Um amor que não resistiu ao brilho dourado dos botões de uma farda!
ResponderEliminarHoje o Quito perdeu-se nos amores do seu romantismo.
Bonito!
Viva a montanha.
ResponderEliminarBela prosa.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarUm conto sem qualquer suporte real, mas só quem tão bem escreve é que lhe consegue dar o devido suporte e a pura realidade!...
ResponderEliminarUma original vertente ficcional nas tuas qualidades de escrita que me prendeu
ResponderEliminardesde o ínicio...traduz bem estados de espírito que nem sempre imaginamos que possam existir.
O teu aviso alertou-me para a imginação pura do texto mas o contexto é o teu peferido sobe pessoas simples e estas também são alvo de sonhos e utopias.
A foto da São está muito bem coadunada nesta mística do imaginário...
Beijos ao escritor pela sua novidade( também espectacular) e beijos à São por saber conjugar a fotografia com o conteúdo do texto do seu amado Quito. A foto é de um simbolismo magnífico!...
Mais um conto do nosso escritor ! e tal como disse o Rafael, acho-o bem real, porque também eu me revejo por altura das visitas pascais, a reunir os vizinhos para irmos para os lados do pinhal a apanhar o cheiroso rosmaninho com o qual cobríamos as ruas e a parte do jardim por onde passaria a comitiva do padre Aníbal, sempre de olho filado na moeda em cima da laranja... !
ResponderEliminarQuanto ao Julião, vindo da tua imaginação, retrata-nos tantos e tantas, que nas mesmas ou parecidas circunstâncias, acabam sós, geralmente acompanhados por um fiel amigo e pelas suas recordações.
Continua Quito. Abraço forte para ti e outro para a São.
Olga