Juncal do Campo
A aldeia é um labirinto de silêncios. Só o badalar do sino na
torre da igreja, proclama as horas de um Tempo vencido. Apenas o vento,
sussurra pelas vielas acanhadas e escuras. No empedrado gasto pelo tempo e pelo
uso dos moradores de antanho, há um vazio que nos espreita a cada esquina.
Já só se pressente o murmúrio dos passos distantes. Ali, ali
naquela casa da rua estreita, morava a Maria forneira. Lembro-me dela, no seu
corpo avantajado. Morreu. E o Lagarto, que batia sola e nos espreitava da
janela por entre um tufo de canteiros floridos. Partiu. Agora a rua está
deserta.
Já só lá mora a solidão. Dobrada a esquina, continuamos a
dobrar a esquina da vida. Acolá, naquela janela, morava a Engrácia. As cortinas
de renda da janela singela, eram a bandeira da dignidade da casa modesta. E
ele, o Duarte, no átrio da casa, ferrava burros, dava injeções no seu estatuto
de enfermeiro de ocasião. E arrancava dentes.
Quem por ali passava, via-o por
vezes a cortar o cabelo aos conterrâneos. Sentados num banco de madeira, o
queixo descaído sobre o peito, os fregueses ouviam o matraquear da tesoura. E o
pente, gasto pelo uso, ia dando forma ao penteado, enquanto o Duarte, de óculos
a precipitarem-se da ponta do nariz e pernas fletidas, aprimorava-se na arte. O
pó de talco, derramado em quantidades generosas no pescoço desnudado, era a
apoteose final de um ato que muito tinha de fraterno. O Duarte não levava
dinheiro pela tarefa. Era o copo de vinho que selava uma amizade antiga. Por
vezes, o amigo insistia e uma ou outra moeda caía no ventre da gaveta escura.
Agora, já só restam as sombras de um Tempo de outrora. O
silêncio e o vento tomaram conta do vale. Aqui e ali, o fumo a sair da chaminé
de um telhado singelo, é o canto lúgubre de quem teima em resistir. De quem
teima em ficar. Dos que fizeram da terra o seu sustento, numa aliança de
lealdade que se perpétua dos antepassados. Dos que se aproximam do patamar de
inverno das suas existências sofridas.
Há um futuro que não existe. Apenas presente. Mas, no
presente, uma réstia de esperança. Da esperança de reencontrar os filhos que vão
aparecer nas épocas festivas. Da expectativa de beijar os netos e de lhes
oferecer algumas notas de euros, arrancadas do fundo da arca antiga, fruto de
muita poupança. De, pelo entardecer, se sentarem na cozinha, à volta da panela
de ferro ao crepitar da lareira, a fumegar de caldo saboroso.
Enquanto lá fora, uma brisa sussurrante percorre a melancolia
do vale de juncos, onde habitam o silêncio e as noites sem fim. É a aguarela
parda com que se pinta, em tons sombrios, a cor da solidão.
Quito Pereira
Retrato fiel do que se vive nessa pequena aldeia....Solidão e uma pequena Esperança que levemente se ergue nos seus corações.
ResponderEliminarOlha Quito sinto-me assim embora numa cidade bem maior,com mais conforto,com família e amigos mas sofrendo de Solidão e sem um pingo de Esperança...Mais ainda repleta de revolta contra toda esta Sociedade injusta.
Não penso assim por ser Natal ao qual já me tornei indiferente até amarga pelos"fingidos"sentimentos de solidariedade que se vêm neste mundo hipócrita!
Beijinho de amizade sincera.
Millôr Fernandes perguntou um dia:
ResponderEliminar“Uma imagem vale mais que mil palavras?
- Então diga isto com uma imagem...”
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Também penso que o conhecido provérbio chinês traduz uma verdade inquestionável quanto à força das imagens, mas entendo que essa verdade não é universal nem absoluta.
A sua superficialidade é apelativa e rápida no despertar de sentimentos mas não substitui a palavra, antes a complementa.
A palavra tem uma solidez e um poder que, só ela, quando bem usada como o Quito tão bem sabe fazer, nos consegue transmitir e despertar emoções.
Que imagens poderiam ser usadas para escutarmos o matraquear da tesoura do Duarte, o canto lúgubre de quem teima em resistir ou a brisa sussurrante que percorre a melancolia do vale?
Não as descortino.
Mas as palavras do Quito, essas sim, situaram-me em Juncal do Campo, nos seus dias de hoje e nos dos seus antepassados.
E senti!
Eu, sempre que leio os textos do Quito, aqui ou no Jornal do Fundão (na semana passada saiu lá uma das suas crónicas «Beiras») sinto-me regressar às minhas origens.
ResponderEliminarBem hajas, Quito.
Faz-me lembrar uma foto que tenho montado no trator do grande barbeiro "slash" ferrador "slash" agricultor "slash" homem dos 1000 ofícios" Duarte. Mais uma "boa malha" paizão ...
ResponderEliminarOlha, amigo Quito, começo logo por apreciar o título do teu texto " A cor da solidão"!
ResponderEliminarNesta paleta colocas um tom monocromático, que nos transporta a uma certa nostalgia, mas... descrito por ti, a alma anima-se, e ganha cores, cores de esperanças, cores de afetos, cores de dedicação, cores de solidariedade.
Juncal do Campo nunca irá esquecer um habitante tão dedicado.
E, continua!
Gosto imenso de ler os teus textos.
ResponderEliminarJuncal do Campo vai permanecer para sempre ligado a este teus textos!
Agora já sei qual é a cor da solidão: aguarela parda com que se pinta, em tons sombrios,
Um abraço
Amigo Quito por todo o lado é a mesma coisa.
ResponderEliminarDa baixa de onde vim aqui para o Bairro ainda esta pior, as casas umas já caíram e outras estão entaipadas.
Estamos assim por todo o lado.
Quito
ResponderEliminarNão consigo diferenciar entre a leitura do que escreveste e o que fui vendo. A realidade é que ia olhando as pessoas assim como os lugares descritos e pensando mas a outra realidade, é que a terceira fase da vida é em muitos lados absolutamente o que dizes e nessa altura a solidão é um dos piores inimigos dos idosos. Um idoso mesmo muito bem acompanhado, pode-se sentir só com os seus pensamentos. Não haja dúvidas que quando se chega à ponta da vida, a saudade do que se viveu acompanha muitas pessoas mas a saudade do futuro, é sentir o que se estava para viver sem lá chegar. Lá, só a aceitação.
Um abraço.
Um bonito e bem escrito texto.
ResponderEliminarInfelizmente, este não é só o retrato de Juncal do Campo, é a visão, embora com outros nomes, do que se passa por todo o Portugal interior. Aldeias abandonadas ou com meia dúzia de velhos à espera da morte. Crianças a brincar nas ruas, nem pensa! As escolas primárias estão ao abandono por que já não há crianças nas aldeias. Os jovens, "fugiram" e, para a maioria deles, já nada os atrai às aldeias onde nasceram. É triste mas é a realidade.
Tem toda a razão.........
EliminarOlá Quito, o meu nome é Catia Santos e sou designer e produtora audiovisual em Castelo Branco. Estou neste momento a colaborar com diversas entidades num projeto de reinserção social nas aldeias do Juncal do Campo e Freixial do Campo através de práticas artísticas. Numa breve pesquisa que fiz online sobre elas encontrei o seu blog e respetivos textos sobre o assunto que estão, para já, muito bons. Gostava assim de falar consigo sobre o assunto a fim de tirar algumas dúvidas que poderá esclarecer e que estão de certa forma relacionadas com o meu trabalho. Cumprimentos
ResponderEliminarOlá, Catia. Um amigo meu, chamou-me a atenção para o seu comentário, pois o texto já tinha sido escrito há algum tempo. Sou um amador da escrita que faço apenas por gosto. Não sou natural da zona, mas convivo com estes povos há muitos anos. Poderá encontrar-me em Salgueiro do Campo, na Farmácia local, exceto aos fins de semana. No que lhe puder ser útil, disponha.
ResponderEliminarJá agora uma retificação. O blogue "Encontro de Gerações", é de Coimbra. Sou apenas colaborador.
Cumprimentos