Hoje choveu. Uma chuva grossa, impiedosa, acompanhada de
granizo, que embranqueceu as valetas dos caminhos. Lá longe, por cima das
montanhas, já se adivinhava a borrasca. Nuvens negras, como novelos de lã
escura, a passear o seu porte austero pela abóbada plúmbea e imensa. O mistério
que se repete todos os anos, de uma primavera zangada.
Nada a que a aldeia não esteja habituada. A água que é
necessária, a quem vive do sustento da terra. Desnecessário é o granizo, que
trai o esforço de quem se dobra sobre um arado, a revolver a terra castanha da
courela.
Mas neste mês de maio, não é a chuva que empapa os terrenos, o motivo das conversas no povoado. No balcão corrido do café da aldeia, entre cervejas e copos de vinho, todos falam do Garrido.
Morreu. Ainda ontem, pelas oito da noite, ali estava sentado
naquele canto. Era sempre assim. Calado, cruzava os braços e ficava a olhar
para a televisão, prisioneiro dos seus pensamentos.
Conheci-o bem. Trabalhava para a Junta de Freguesia. Guiava
um pequeno triciclo motorizado encarnado, de caixa aberta, onde trazia todos os
apetrechos para a limpeza das valetas e dos caminhos. Um homem simples que
tinha mulher e filhos.
Cumprimentava-me com cerimónia, sempre que se cruzava
comigo. Fazia uma vénia e levava a mão ao boné, num cumprimento cordial e
silencioso.
O Garrido, como alguns outros, era património da aldeia. Os
caminhos que tratava com desvelo, estão mais pobres e há um vazio que dói.
Falta mais uma peça, neste simples viver comunitário, em que cada um tem a sua
tarefa distribuída.
Ontem, o aldeão deitou-se na cama e hoje não acordou. Morreu
acompanhado do mesmo silêncio inquietante que o envolveu na existência.
Ao Mário, irmão do falecido, dei os meus sentimentos.
Agradeceu, estendendo-me a mão calejada e a boca retorcida num esgar,
falando-me conformado da inevitabilidade da morte. Afinal, a linear filosofia
de pensamento que rege o mundo opaco dos deserdados da Vida.
Do Garrido, fica - me a imagem numa curva do caminho. No meu
escritório, em Sua homenagem, vou ouvindo absorto, Amadeus Mozart e “Lacrimosa”, no alinhamento da Missa de
Defuntos. Um turbilhão de vozes que nos
transportam para lá da nossa fragilidade terrena – o Requiem de Mozart. Escrito pela pena de
uma mão erudita de inspiração Divina. Uma genialidade inacabada do Autor, cuja Morte
implacável e egoísta, o reclamou para Si. Porém, outros o fizeram, num legado à
Humanidade, transversal aos séculos.
Que o Manuel Garrido esteja em paz. A mesma paz com que
conviveu com a Natureza, a quem sempre tratou com a cortesia do seu labor,
durante os seus sessenta e nove anos da sua vida, que, por ironia do destino,
completava no dia do seu passamento.
Quito Pereira
Todos nós vamos passar pelo mesmo.
ResponderEliminarO apagamento geral.
Um homem de nome Garrido, amante da natureza, amigo do Quito, teve um " passamento" como presente de aniversário!
ResponderEliminarOnde quer que esteja, estará feliz com a lembrança do amigo que aqui escreveu sobre o seu viver.
A moldura do texto revela bem a tua amizade com as pessoas com quem te cruzas, no dia a dia, além da sombria tristeza da Morte de alguém.
ResponderEliminarUm belo envolvimento afectivo perturbado pela morte de um amigo...
A vida e morte sempre de mãos dadas.
Beijinho,Quito
O que dizer de mais este excelente texto !
ResponderEliminarA pretexto da morte do amigo Garrido,consegues manter-nos atentos à sua leitura, descrevendo como as condições atmosféricas, quando adversas podem ser presságio de acontecimentos menos bons.
Desta vez pressentiram a morte de um filho da aldeia.
Mais um que vai desfalcando a aldeia, seja no número de habitantes, quer seja dos que vão frequentando o balcão corrido da taberna, ou menos um que vai cuidando da limpeza das valetas...
Pois, mas da lei da morte não há escapatória!
Fica-te por algum tempo a imagem desse amigo, que a poderás recordar mais algumas vezes, enquanto vais ouvindo a tua música preferida!
Um abraço!
E o Jornal do Fundão a perder estas tuas pérolas...
ResponderEliminarO Quito expõe-nos a morte do senhor Garrido como só ele sabe, pois envolve toda uma aldeia. No entanto, o senhor Garrido não deve ter sofrido muito ou até nem sofreu, pelo que foi feliz na sua despedida. Que descanse em Paz.
ResponderEliminarVão-se os Garridos e vão-se alguns dos nossos amigos! Temos que encarar com alguma serenidade.
ResponderEliminarRelembrá-los será a maior homenagem que lhe podemos prestar!