sexta-feira, 13 de agosto de 2010

EGOISMO


Hoje tive que ir à Baixa.
Não vi nada de novo, mas o facto de lá não passar há muito tempo, tinha-me feito esquecer...
Concluí que a grande vocação do homem é fugir de si mesmo.

Sob a fiada de colunas que rodeiam o Teatro Nacional no Rossio, há um grupo de sem-abrigo. Ali fazem as suas camas de papelão, ali guardam os materiais que recolhem do lixo e ali se reúnem para as parcas refeições. Estão sujos, vestem trapos e encerram nos seus modos uma contradição quase necessária ao cenário urbano, como seu contraponto. Fazem parte da paisagem.

A presença deles aflige-me de maneira peculiar. Representam um ultraje aos meus costumes, à minha educação e ao meu aconchego. Como um espelho às avessas, olhar para eles traz-me lembranças da minha própria imagem. Lembro-me da habitual gravata que levo ao redor do pescoço, o fato e a camisa lavada e passada a ferro, a pasta na mão com documentos criteriosamente guardados. É nesse momento que a frase me vem à cabeça e percebo: a grande vocação do homem é fugir de si próprio. A indumentária, o perfume e a postura são apenas disfarces. São maneiras de ocultar uma natureza que é muitas vezes feia, suja e dolorosa.

Ao passar pelos mendigos, deixo uma moeda na mão espalmada que invade o meu caminho num gesto automatizado e numa lamúria que se repetirão ao longo do dia. No fim daquele braço não há um indivíduo, não há rosto, não há uma identidade. Há apenas uma boca a ser alimentada e um ligeiro intervalo na minha existência. A mão estendida é uma falha no sistema.

Aquela moeda que deixei nas mãos do mendigo não é sinal de bondade, nem de benevolência e nem sequer de compaixão. Ela só serve para acalmar a minha própria consciência, para tentar isentar-me de qualquer responsabilidade. É um álibi contra as acusações de um dedo inquisidor que me fere diante do espelho. Com o esquecimento, aquela moeda que deixo nas mãos do pedinte não existe. Aquela moeda, como tantas outras, é apenas uma ilusão.
Ao entrar no luxuoso escritório para onde me dirigi, esqueci a mágoa que, na rua, me mordeu por uns minutos.

E a vida continua...

Rui Felício

12 comentários:

  1. Explicação para o Rafael:

    Embora estivesse em rascunho no Cabrito de Sicó, resolvi publicar no blog Encontro de Gerações para testar se estava a funcionar.

    Poderá ser retirado se o Rafael entender ser preferivel por enquanto.

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  2. infelizmente Rui não só Portugal mas o mundo está carregado de pessoas que dependem da benevolência dos outros. Já fiz um trabalho fotográfico sobre este assunto, que intitulei "Só um cego não vê" que mostra aquilo que todos vemos diariamente nas nossas cidades mas que fazemos de conta que não vemos, apesar de não ser nosso obrigação. O estado é que se balda às suas obrigações de cuidar destas pessoas.

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  3. É verdade menino.
    Que volta é que se tem que dár a isto tudo para alterar esta dura realidade?
    Mudar mentalidades?
    Francamente não sei.
    Bem escrito, tema muito actual.
    Tonito.

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  4. Vão-se entretendo, os que já têm conhecimento, comentando ou postando!
    A São Rosas ainda não deu o sinal para a inauguração oficial!
    Ainda não fiz os "convites" todos e a participação para 230 mail´s e a comunicação da "mudança" no meu querido e benemérito Cabrito de Sicó"

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  5. Infelizmente esta situação também se passa em Coimbra, embora claro numa dimensão proporcional á dimensão das respectivas cidades.
    E será sem dúvida o que se passará no Porto e em muitas se não todas as outras cidades de Portugal!
    E se dói ver que muitos destes"seres humanos" por vezes caiem nestas situações porque foram atraiçoadas pela vida que a certa altura lhes virou as costas.
    Mas no meio da desgraça e da raiva que a situação lhes provoca ainda conseguem, eles próprios serem solidários...
    Isto a propósito de uma situação passada há muitos anos com o meu filho e um dos meus sobrinhos, que foram a Lisboa por causa da "ida para a tropa" deste meu sobrinho.
    Foram de combóio e talvez tenham gasto mais do que deviam e quando foi para o regresso faltavam uns escudos para os dois bilhetes!
    Á beira da estação de Santa Apolónia e depois de contarem e recontarem o dinheiro verificaram que realmente a "massa" não chegava!
    Já não me lembro bem, mas penso que talvez fosse 1 escudo!
    É então que um destes "sem abrigo",sentado no chão e quando os dois passam por ele lhes estende a mão na esperança de uma ajuda!
    -Pois é meu amigo,eu até ajudava, mas neste momento quem precisa somos nós que nos falta 1 escudo para ir de comboio para Coimbra!
    Então a criatura pegou numa moeda de escudo e entregou-a "áqueles necessitados"!
    Agradeceram, compraram os bilhetes e regressaram a casa!
    Este episódio chegou ao conhecimento do já falecido jornalista do Jornal de Notícias João Bravo, que depois a publicou nesse diário!

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  6. É uma ilusão de facto,a dita moeda...
    Retempera-nos por minutos a nossa consciência
    ...alheada destas situações embora latentes
    dentro de nós!!!

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  7. Tema muito actual. A chaga das grandes cidades.
    Gostaria de lembrar aqui os voluntários da noite, que vão tentando minimizar o sofrimento destas pessoas...

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  8. Drama bem actual!!!
    Somos solidários no momento...mas depois esquecemos...e voltamos a "olhar" para o nosso umbigo!!!????

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  9. «Vemos, ouvimos e lemos,
    não podemos ignorar...»
    Como resolver?
    Não tenho a resposta, mas se continuarmos à espera que seja o Estado a fazer...

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  10. Um retrato, em alto contraste, do mundo em que vivemos. Triste realidade.
    Não faz falta a ninguém. Nem a ele próprio.
    Quantas pessoas estarão hoje assim, perdidas em moradas isoladas, sem contactos nem interesses, cortadas de uma sociedade da qual, de facto, estão excluídas?
    É verdade que muitos milhares dos nossos cidadãos entraram precisamente no período onde o isolamento pode atingir o auge e será preciso uma renovada atenção dos organismos vocacionados para os assuntos sociais e uma maior implementação da parte oficial. Porque para muitos, a única ligação com o exterior passava pelo trabalho e com a sua perda perdeu-se também o pouco contacto social com o patrão, com os colegas de trabalho e pode-se conhecer numa insuportável solidão.
    Nenhuma estrutura agora vira suportar todo aquele que deixou desintegrar o seu tecido de relações. Estarão fora de jogo!
    Que dizer da solidão das pessoas idosas com o alongamento da duração da vida, que alonga também, os períodos de viuvez. Que dizer de aspectos particulares da vida na sociedade de hoje, como a solitude nos adolescentes, o recuo da vida de casal, casamento e concubinagem, monoparentalidade.
    Assunto sério.

    Carlos Falcão

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  11. Após uns dias de "mesas fartas", esta leitura é um verdadeiro murro no estômago...

    A par destas situações ainda me ocorrem as da pobreza envergonhada!

    Dentro das nossas possibilidades, vamos tentando minorar a sorte de alguns,sempre escondendo com a mão esquerda o que faz a da direita.

    E aí, conheço verdadeiros filantropos!
    Abençoadas almas generosas.

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