Hoje, olhando a paisagem neste plácido dia de outono e
lembrando os lamentos do Daniel e a sua Via Sacra por Monsanto, recordei
Fernando Namora. O médico, também por ali andou. E foi ali que, durante um
período da sua vida, exerceu a sua profissão. E foi também ali, que se libertou
da morte. Os seus livros talvez mais emblemáticos, “ Retalhos da Vida de um Médico”
e “ A Nave de Pedra”, são o retrato eloquente por palavras, da vida e costumes
dos que habitam no vácuo do Tempo, aprisionados por entre montes e penedias.
Diz Namora em “A Nave de Pedra”: “ Assim, de facto, o sentimos: remoto e em
degredo. E Monsanto se chama, de pedra é feito – minha nave coalhada”.
Vou desfolhando, vagarosamente, “Retalhos da Vida de um
Médico”, relendo uma prosa que balança entre o universo que rodeia o escritor e
o desencanto mascarado de queixume. Enquanto me dedico ao descodificar das
palavras, vou refletindo em como serão mais felizes, aqueles que por aqui vivem
e labutam. Porque são esses - os que vão fazendo da leitura o seu porto de
abrigo das tempestades da alma – quem mais se apercebe das pinceladas escuras
com que é pintada a tela do quotidiano raiano, que Fernando Namora soberbamente
nos retrata. Não basta, calcorrear as planícies da Beira-Baixa, em programas de
fim – de - semana. Não basta, apontar uma máquina fotográfica a um penedo imenso,
que misteriosamente permanece em equilíbrio instável há séculos. Não basta, uma
conversa de circunstância, com um qualquer campesino. Não basta, apontar um
dedo ao céu, em êxtase, ao ver voar, em círculos, uma águia – real. Não basta. É
preciso viver-se neste rincão da Beira, para se perceber os dramas deste
Portugal esquecido e profundo. Portugueses que não ocupam o pensamento dos que
percorrem os corredores frios do poder e decidem da nossa vida coletiva.
Há vinte e quatro anos, que oiço o badalar soturno de um
sino. Não sou um académico, que me permita análises aprofundadas sobre a obra
de Fernando Namora. Seria um atrevimento, a tocar as raias do ridículo. Mas
arrogo-me a dizer-vos, que percebo Namora. Percebo o seu SENTIR. Percebo-lhe as
agruras da alma. Percebo-lhe o desencanto de ter que competir com bruxas, videntes
e curandeiros. Percebo-lhe o espirito humanista. Percebo-lhe que mais que as
dores do corpo, Fernando Namora nos aponta as dores da alma.
É o seu olhar arguto e a sua prosa parda como o granito,
agreste como as vidas sofridas, que lhe permite dizer no fluir do seu
pensamento que “ … para quem o pão é custoso, o pão se torna epopeia …”.
Esta é uma realidade actual, e que foi proferida por quem nos
deixou no último dia do mês de Janeiro do ano de mil novecentos e oitenta e
nove.
Lá, em Monsanto, Daniel jamais lerá o escritor. Vestido das suas novas roupagens de Monsantino humilde e rude, o camponês também sente – tal como Namora, em vagas de nostalgia - o desconforto da solidão e do isolamento. Desconhece que o escritor, que ali habitou e exerceu medicina, jamais lhe poderá acudir às reclamações de um corpo gasto e cansado. Mas que, com a pena dos predestinados da palavra escrita, em momentos de grande exaltação intelectual, lhe imortalizou numa prosa fecunda e profunda, as chagas da alma.
Não basta a passagem ligeira por terras beirãs ou de outras regiões portuguesas... mas é melhor que nada ! Há quem nunca o faça e, dessas pessoas, tenho pena pois, não sabem o que perdem pois,ilusòriamente,pensam o que "não é nacional é sempre melhor".
ResponderEliminarOra o teu texto "aproxima-nos" dessa genuina realidade aldeã,completado pelos livros de Fernando Namora..."Diálogos Em Setembro" é outro grande livro deste autor do qual gostei muito.
E assim nos ofereces mais um pedacinho da tua escrita bem sentida e vivenciada por ti.
Bjo
Também gostei!
ResponderEliminarO primeiro livro que li de Fernando Namora foi “Fogo na Noite Escura” escrito um ano depois da sua formatura e que retrata a sociedade académica dos anos quarenta que ele viveu intensamente vindo estudar para Coimbra, da Condeixa próxima onde nasceu, mas educado nas raizes rurais de Ansião de onde eram originários os seus pais.
ResponderEliminarEsse romance neo realista é, quanto a mim, que também vivi o ambiente coimbrão, a marca de água literária deste grande escritor.
Fernando Namora nele nos descreve com uma exactidão fotográfica, a velha Universidade que até então acolhia os filhos de aristocráticas familias, quase desprezando os nóveis estudantes oriundos de familias da pequena burguesia rural, criando clivagens e litigios entre gerações que começavam a digladiar-se não pelo mérito escolar mas pelas origens dos seus alunos.
Li-o, ainda estudante...
O segundo que li foi aquele que o Quito refere e que terá sido o mais famoso dos romances da sua extensa obra literária: “Retalhos da Vida de Um Médico”.
E li-o, impulsionado pela memória inesquecivel da minha visita a Monsanto na altura em que fiz serviço militar em Penamacor onde permaneci mudo em frente à casa do escritor que já então tanto admirava.
Curioso o paralelismo entre os dois romances! Num, no primeiro, Fernando Namora fala das diferenças entre estudantes aristocratas e estudantes de origens humildes. No outro, as suas preocupações são análogas. Com a diferença abismal de, no segundo, as clivagens serem bem maiores e pronunciadas.
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O Quito, em tudo o que tem escrito, pode perfeitamente ser comparado a Fernando Namora.
Porque quando hoje escreve, mostra-nos que essas clivagens sociais se mantêm todo este tempo passado!
Porque tal como o Daniel e tal como Fernando Namora, também ele percebe o sentir de ambos. Também ele sabe o que é o desconforto e a solidão daqueles que observa e com quem convive.
E, tal como o grande escritor,
Também ele sabe, de forma inigualável, transmitir-nos pela palavra escrita esse sentir...
Rui
EliminarQuando vem um texto, novamente?
Faz falta a tua escrita...
Tu e o Quito habituaram-nos a belos textos.Queremos mais!
E outros/as que também têm esse dom de escrever,deliciem-nos também.
Saber escrever sobre o que nos rodeia, não é para todos.
ResponderEliminarPara este Menino não há problema,pois ele tem o dom da escrita.
Tonito.
Sejas bem aparecido, Quito!
ResponderEliminarGosto muito do teu "sentir" e sei dar valor a personagens como estas que nos relatas, bem como o fez Fernando Namora, pois passei 20 anos de professora com vivências semelhantes à do Daniel.
Um prazer ler-te, sempre.
Quito gostei mais uma vez de ler este teu trabalho.
ResponderEliminarMais uma vez a interioridade, o isolamento e a desertificação do interior estiveram presentes neste magnifico texto!
Também e mais uma vez foi soberbamente comentado pelo Rui Felício!
Um abraço e um bem haja para os dois!
A desertificaçao do interior!Tema altamente em foco esta semana nestas bandas!Sobretudo no capitulo da medicina.O ministro da Saude propôs hoje aos jovens médicos que aceitem ir para as zonas rurais, um vencimento garantido de 4 600€ mensais!Mesmo assim, a maior parte dos jovens médicos preferem optar por zonas urbanas,usufruindo dos prazeres e bem-estar citadinos.
ResponderEliminarMas nao esqueçamos que a falta de médicos, que se faz sentir actualmente se deve ao facto duma enorme pressao exercida por aqueles que estao agora com o pé na reforma!!!!Hà uns 10,15 anos atràs, lutaram para que a concorrência nao viesse alterar o seu standing!!!Agora que sao precisos, nao os hà, porque formar especialistas demora uns 10 anos!!!!Dai a forte presença de médicos Romenos e de outras nacionalidades.
Quito, mais uma vez os meus parabens!Lindo texto!
ResponderEliminarPois é, Quito, não basta...
Não basta calcorrear as planícies da Beira-Baixa. Não basta, apontar uma máquina fotográfica a um penedo imenso. Não basta uma conversa de circunstância, com um qualquer campesino. Não basta, apontar um dedo ao céu...
Pois é, Quito, não basta!
É preciso sentir, tal como Namora, tal como tu.
Toma lá o meu abraço.