É Tempo de Natal. Por aqui, por este Lugar, a aldeia é
varrida por um estranho silêncio. De lá, do lado da Gardunha, vem uma aragem
amena que percorre a planície. É uma trégua, neste desfalacer de Outono. São
onze horas da manhã e as ruas do povoado estão desertas. Não se vê ninguém. Apenas a Judite,
vai espiando os meus movimentos, por detrás de uma pilha de botijas de gaz que
tem à entrada da venda. Pela porta entreaberta dos Correios, vejo o perfil da
Adélia, pesando a correspondência. Uma carta, nesta época festiva de afetos, é
um cofre onde se guardam as palavras ternas. As palavras que percorrem o país à
procura do seu destinatário. Ou voam pela Europa, num hino surdo à saudade.
Desço as ruas em passo sossegado. Caminho pelos campos, entalado entre muros de xisto e de granito e ali, no fundo do povoado, vejo um grupo de homens e mulheres que colhem a azeitona. É uma "camarada", como se diz neste rincão. Saúdam-me com um aceno de mão. Respondo com um sorriso largo e prossigo o meu caminho. Cheguei ao lar de Salgueiro do Campo. Cá fora, sentado junto a uma porta, de boné castanho na cabeça, está o Manuel com um canivete na mão. Vai descascando batatas para um alguidar, que serão a refeição do almoço. Ao lado, naquele barracão, o Jerónimo vai rachando lenha. Já hoje, percorreu cinco quilómetros a pé. Sobe e desce a colina em passo largo, apesar dos seus setenta e muitos anos de vida. Vai à loja da bomba de gasolina, onde compra as pilhas para o seu rádio - portátil. São vinte cêntimos mais baratas que numa outra loja da aldeia – diz -me. Faz sentido, quando cada cêntimo conta, no magro pecúlio da sua reforma.
Dentro do lar, os idosos concentram-se ao redor de uma enorme
lareira. Uma televisão junto ao teto, vai debitando informações ou programas
lúdicos que a ninguém interessam. Alguns, de olhos postos nas brasas, vão fazendo
o balanço do deve e haver que foi a sua vida. Uma espécie de juízo final.
Outros, de olhos parados e baços, percebe-se que já estão fora do mundo. Estão
ali fisicamente, mas já partiram. Nem me reconhecem. O que dói.
Na noite de Consoada, todos se sentarão à volta de uma mesa farta. À sua roda, terão aquelas que, com zelo e carinho, lhes tentam amenizar o inverno da vida. São as funcionárias do lar. De tarde, os idosos, alguns, terão a chegada de familiares. São momentos com lágrimas. Outros também virão, numa visita de circunstância. E ainda há os outros, que não terão ninguém. Nem lágrimas nem lembranças.
Lá em cima, no cocuruto da aldeia, perto da igreja, junta-se a
sociedade campesina, em redor do madeiro de Natal. É o calor que lhes aquece as
almas, a par das castanhas e da jeropiga. Ouvem-se canções ancestrais em louvor
do Deus - Menino. São melodias natalícias, que se confundem com a identidade destas
gentes que, honrando as tradições legadas pelos seus antepassados, jamais
abdicarão da sua religiosidade que é o alento para as contrariedades da vida. E
o enorme braseiro, mais não é que o crepitar do coração de uma aldeia e de um povo
com séculos de História.
Quito Pereira
Bonito, bonito, boniiiiiiiiiito. A gente sabe que é assim a vida nas aldeias do nosso Portugal. Adoro a escrita do Quito, pela realidade que utiliza.Nunca vivi na aldeia mas, quando trabalhava, percorri as Beiras, Minho e Tràs os Montes.Parava o carro, por vezes, para falar com as pessoas e contemplar as paisagens, o fumo que saía das chaminés. Um dia, tinha saído de Foz Coa em direcção à Régua, passando por Numão, S.João da Pesqueira e....antes de começar a descida para Peso da Régua, parei o carro. Até lá abaixo os vinhedos, bem arrumadinhos, perdiam-se de vista. Então, naquele fim de dia silencioso, apateceu-me gritar com muita força, a plenos pulmões, pela beleza que a Natureza colocou ali defronte de mim. O que valeu é que não passou carro algum, porque podiam pensar que era louco.Fez-me bem aquele fim de tarde.Dormi tranquilamente em Lamego.
ResponderEliminarUm abraço, Mário Rovira. Boas Festas, extensivas à família...
ResponderEliminarBoas Festas, Quito.
ResponderEliminarE bem hajas por nos levares ao nosso interior.
Igualmente, Paulo. Um novo ano bom, para ti e para os teus ...
EliminarUm abraço
Gostei Quito.
ResponderEliminarFestas Boas.
Tonito.
Um abraço, Tonito. Que tivesses um bom dia de Natal, é o que te desejo ...
EliminarFilhos de Cristo, filhos d'Adão,
ResponderEliminarBuscam no mundo codeas de pão!
Assim se referia Guerra Junqueiro, na sua obra Os Simples, às gentes campesinas de horizontes apertados, cuja labuta diária e rotineira só era alterada ciclicamente em datas fixas de festas, a maior das quais era o Natal.
Importante quadra essa no seu imaginário, nem por isso modificava os gestos essenciais e repetidos dia a pós dia, ano após ano.
É dessas gentes rurais que o Quito nos fala, a nós citadinos que no frenesim da comemoração natalícia, substituimos a simplicidade pela exuberância plástica que dura umas horas de despropositado e exagerado consumo, esquecendo a beleza de um madeiro comunitário a aquecer e alumiar as noites da aldeia.
A poesia de Junqueiro e a prosa poética de Quito Pereira, mais de uma centena de anos separadas, estão aqui de mãos entrelaçadas neste belo texto que nos faz pensar...
Há dias, num pequeno restaurante do nosso Bairro, também alguns de nós fizemos o nosso Natal. Um Natal citadino, à volta de uma mesa, como se do Madeiro se tratasse. Eu, a São Vaz, a Olinda Rafael, o Tonito, o Fernando Rafael e o Rui Felício, celebrámos a amizade, em Época do Ano em que se pretende celebrar a concórdia. Jantamos, rimos e também falámos de coisas mais sérias. Foi um jantar de Amigos, a juntar a muitos outros. E nem a jeropiga faltou, para dar ao repasto, um pouco do cunho beirão raiano. A lareira não estava lá, mas havia o calor de um momento em perpetuámos mais de quatro décadas de uma cumplicidade amiga, entre habitantes de um Bairro, que seremos sempre, mesmo que a Vida, a alguns de nós, tivesse torcido o Destino ...
EliminarUm abraço, Rui ...
Um abraço de amizade para todos que de uma tão foma simples e "ad hoc" "festejámos" comunitàriamemte até "parecia"o madeiro ardia em cima da mesa...as nossas caras "iluminadas"tansmitiam coesão,diferenças também e as conversas banais tiveram uma dimensão enorme.
EliminarClaro, gostei do teu texto.
Tenho um livro muito bom O MADEIRO que relata todas essas vivências à volta dele...Gosto de o rever,de vez em quando.
O madeiro já ardeu, Quito?
EliminarAi, eu a fazer rabanadas e tu a conversares na tua terrinha adotiva e... a jantares com uns amigos, cujos nomes me não são desconhecidos!
Só hoje tirei folga e vim pôr a leitura e a escrita em dia.
Já sei que foi um Natal de arromba, por entre panelas e terrinas. Pudera !!! A cozinheira era de mão - cheia ...
EliminarBoas Festas, Celeste Maria ...
Muito realista e muito sentimental!
ResponderEliminarInterior desertificado, a pobreza, a simplicidade da vida dos resistentes...
No que toca aos lares não deve ser muito diferente quer se trate de meio rural ou urbano. O Quito vê com os olhos do coração!
Continuação de Boas Festas. Beijinho
Boas Festas, Helena. Um abraço para todos vós e que o Novo Ano corresponda aos vossos anseios ...
EliminarE mais um Natal passou...
ResponderEliminarNesta época misturam-se em mim imensas sensações começam por ser uma sensação de chatice,de desistência ,à última da hora "embarco" e o entusiasmo cresce.
Começa às 20 horas,no dia 24, com o bacalhau em casa de um familiar...às 23,30 horas passa-se para casa de outro familiar até às tantas para distribuição de prendas,comes e bebes e muita alegria...no dia 25, almoço em casa de outro familiar com muita conversa e o " bandulho" cheio até às 22 horas...E apenas sou ajudante para pôr a loiça na máquina.Mas que dá muita trabalheira dá!!!Pronto,este ano já foi e para o ano logo se verá! Boas Festas,malta!
Pois que para o ano, cá estejamos de novo a celebrar. Um abraço, Olinda ...
EliminarEnfim cheguei à tua postagem!
ResponderEliminarNão tenho tido disponibilidade de tempo para tantas solicitações!
Consoada, distribuição de prendas, almoço de Natal.30 num lado, mais 18 noutro, sempre até ás tantas!Um Natal que correu muito bem!
O teu também terá sido bom!
É realmente uma quadra festiva que devíamos peservar.É rica em afectos, desejam-se a cada passo Boas Festas Feliz Natal!
Estamos com a familia seja na consoada seja no almoço de Natal.Há alegria e como há crianças torna estas reuniões mais alegres.
Tão alegres não são os protagonisata do teu texto de hoje!
Passando pela falta de alegria nas ruas desertas também dás conta da tristeza, que é a realidade dos lares!Todos os meses passo por um lar e não é muito agradável ver que alguns idosos têm mesmo que passar o resto da sua vida nestas instituições.É um ambiente pesado, apesar da forma carinhosa como são tratados e nesta quadra tudo fazerem para lhes dar um pouco mais de amor e carinho e a visita dos familiares!
Está tudo no teu rexto que gostei de ler!
Foi também, como dizes um bom momento o que passamos no restaurante.Mantivémos mais uma vez bem viva a chama que acendemos em 2008!Uma amizade que reacendeu nesse ano e se vai fortalecendo cada ano que passa!
Um abraço!
Mais uma vez, tiveste a tua numerosa família à tua volta. Ainda bem e que para o ano se repita ...
EliminarUm abraço
Quito, sempre que te leio e me confronto com a outra realidade que nos trazes, as vivências que nós citadinos por vezes nem imaginamos, fico a pensar como é possível num país tão pequeno tantas assimetrias e formas de viver tão diversas.
ResponderEliminarUma situação é idêntica e generalizada, a semelhança dos lares, das pessoas já sem vida, em momento de transição, de pessoas suspensas no tempo aguardando a passagem para a não-vida, olhando para uma televisão que já nem veem, recolhidas sobre o seu próprio silêncio.
Nesse lugar distante mas ao mesmo tempo tão perto, há no meio dum mundo de carências a partilha da solidariedade e amizade, não havendo como aqui, cada vez mais recolhidos no vão duma montra envoltos numa manta de cartão. Sinais dos tempos, de angústia, de egoísmo de muitos outros que lutam com a incerteza do amanhã.
Tudo nestes tempos de Natal de maior partilha é diferente. Olhamos para o nosso próximo com outro olhar. Às vezes também com algum cinismo. Os nossos corações abrem-se na procura de maior compreensão dos outros e também de nós próprios…
Gostei da forma e da ternura de cada palavra, da forma como descreves esta gente simples e que pela tua escrita nos transportas até nós de forma tão sublime. Obrigado Quito.
Meu Amigo, para ti para a São para os teus filhos e toda a família, com um grande abraço os meus desejos que tenhas umas Boas Festas e que o Ano Novo vos traga saúde e felicidade.
Abílio
Apenas agora dei conta deste comentário, caro Abílio, e ainda há momentos tivemos oportunidade de confraternizar. É excelente a reflecção que fizeste sobre este tema e que é um bom complemento ao que pretendi transmitir.
EliminarPara ti, Zeca, restante família agora alargada, os meus desejos de um futuro risonho.
Obrigado, pela participação ...
Mais um texto fascinante, amigo Quito !
ResponderEliminartoma lá um abraço, para ti e para a São, com o desejo de muita saúde e alegria para o ano 2013. Penso que com estes dois "ingredientes" fundamentais, o resto virá por acréscimo.
Olga
Um abraço, amiga Olga. Obrigado pelo comentário ...
EliminarTem havido, por parte de alguns de nós, uma preocupação pela ausência neste espaço do amigo Carlos Viana. O que desejo e desejamos, é que tudo esteja bem com ele. Mas se algo o apoquenta, lembro-lhe que o sol nasce todos os dias.
Vós, meus amigos, "ambos os dois", fazem falta ao grupo...
BOM ANO ...
Voltei aqui e já se compreenderá porquê...
ResponderEliminarTenho andado a ler “Portugal” de Miguel Torga, em que ao Autor caracteriza os diversos povos que formam o povo português.
E, na verdade, não nos comportamos todos da mesma maneira. Somos uma amálgama de gentes ligada pelo cimento de oito séculos de História, mas não somos todos iguais...
A marca de água do Quito em todos os seus contos e crónicas está, para mim, de há muito, perfeitamente identificada. Já o disse várias vezes que o Quito, ou porque assim nasceu, ou porque bebeu e assimilou ao longo dos anos vividos na Beira Baixa, os traços do homem beirão, transmite-nos com uma precisão e um pormenor assinaláveis as pessoas e os locais por onde o seu espirito atento e observador vagueia.
Leio Torga quando este se queda na apreciação dos beirões, e leio Quito Pereira, e não posso deixar de encontrar um igual fio condutor, um paralelismo de pensamentos, uma semelhante forma de escrever. É inevitável a comparação! E a consonância!
Torga esceveu:
“... o beirão é capaz de tal ubiquidade, que ao mesmo tempo que moureja na América, colabora activamente na construção do fontanário da sua terra.
Do caldo de couves faz um manjar, do azeite uma tibornada, da lanchurra um cobertor de papa e da carne de cabra uma chanfana de endoidecer”.
E mais à frente:
“...criatura impoluta do pecado original, para quem a vida não é suplício nem degradação, mas um contínuo reencontro com a natureza...”
Leio Torga e mentalmente me afloram à memória as inúmeras personagens que o Quito nos tem dado a conhecer.
É inevitável a comparação!
Porque só sei que foi Torga que escreveu porque tenho o livro no regaço e está lá escrito o seu nome.
Poderia facilmente pensar que tinha sido o Quito a escrevê-lo, se assim não fosse.
As espaços, o Rui Felício traz a este blog a lembrança daqueles que são a nata do património da nossa escrita. Seja, entre outros, Herculano, Namora, Junqueiro ou Torga. É salutar que assim seja. Mas, com amizade e franqueza lhe digo, que introduzir o meu nome no seio dos predestinados da escrita, é uma profunda heresia. Já tive a oportunidade de lho dizer. Os textos com que vou alimentando um espaço de amigos, são carregados de limitações das quais tenho perfeita consciência. Apenas poderei fazer um paralelismo a Fernando Namora. Não que eu tenha a desfaçatez de me comparar à sua prosa. Mas porque conheço os palcos que pisou e que foram o motor da sua escrita apaixonante. Cada vez que leio Namora, é como se o fizesse pela primeira vez. Porque cada palavra, cada frase, são sempre motivo de meditação. Porque da sua escrita, consigo extrapolar para a minha vivência beirã, factos,modos de pensar e de reagir dos povos. Afinal a pauta onde Namora escreveu, em penadas de talento, um hino à solidão.
ResponderEliminarA solidão, porém, também tem a sua beleza. Recordo ainda hoje, o dia em que trepei à aldeia do Ingrenal. Foi como estivesse fora do mundo, ao olhar a paisagem descarnada e o uivar de uma brisa, que nos faz sentir esmagados e pararmos para pensar da nossa frágil condição humana. Para alguns, muitos, esta é uma forma de sentir fora do que é a realidade da vida de hoje. Mas ali, no Ingrenal, vive gente. Gente idosa, cujo universo de preocupações se centra na azeitona que pela Graça de Deus lhes cai no regaço,ou no "vivo" que, na pocilga, é igualmente fonte da sua sofrida subsistência. Sempre respeitei estes portugueses, por vezes caricaturados com desdém. Sobretudo por alguns que, evidenciando uma pretensa cultura de caserna, pouco ou nada sabem da genuína sabedoria popular, transmitida de geração em geração.
Muito do que vou transmitindo, é minha forma de sentir este universo. Mas apenas empurro as palavras, porque a exaltação do mundo campesino, feita com violinos do mais fino timbre, tem os seus brilhantes executantes no mundo das letras e estão devidamente identificados ...
Ao Rui Felício, porém, agradeço a simpatia das palavras ...
Em tempo: A espaços ...
ResponderEliminarAno Novo, teimosia velha, Quito...
EliminarTambém tu, Paulo ??? . Claro que não é teimosia. Eu apenas, ponho as coisas no seu devido lugar. O Rui, que muito prezo, por vezes "passa -se" e produz afirmações "perigosas". Quando diz " não sei se estou a ler Torga ou Quito Pereira", tenho que admitir uma generosidade que fará sorrir de desdém, quem não gosta dele, nem de mim ( é uma constatação). Mas tenho que assumir, que uma afirmação deste teor é absolutamente excessiva e em termos de realidade académica, no que concerne à análise técnica do prosar de Torga ou Namora, eu NÃO EXISTO. Há milhares de portugueses a escrever coisas com uma qualidade que eu nunca lhe chegaria aos pés. Até gente praticamente desconhecida. Um exemplo: Manuel Bastos. É um desconhecido e extraordinário escritor, com uma bitola de escrita, onde eu nunca chegaria...
ResponderEliminarEstou certo que o Rui Felício, não levará a mal estas considerações que acabo de tecer.
Toma lá um abraço
O Rui Felício, tal como eu, vê alma no que escreves. E isso não é para todos.
EliminarÉ isso mesmo Paulo Moura!
EliminarA substância é a Arte e não é para todos.
A técnica é o instrumento e essa qualquer um pode obter...
Como eu sempre digo, "Eça é que é Eça".
EliminarJá só aqui falta o Viana, nesta espécie de Tribunal da Inquisição ....
ResponderEliminarTu querias era aquecer-te à fogueira...
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