sexta-feira, 11 de outubro de 2013

A METAMORFOSE



 


O Ocreza é um rio triste. As suas lágrimas cristalinas, escoaram-se como que por mistério Divino. Agora, na Ponte do Tabuinhas, apenas um leito seco e pedregoso, a gemer de saudade pelo hino triunfante de um caudal a saltitar de fraga em fraga. Também a estrada sinuosa que conduz à montanha, está deserta.

O sol, escondido entre nuvens, disfarça um sorriso desmaiado. Mas ali, na bruma baça que esconde o porte austero das montanhas, apenas se pressente a solidão. E um Tempo que não chegou. Os campos ainda não se pintam com as tintas de outono. Mas breve será. Há uma brisa que me leva ao sabor do vento. Percorro mentalmente os trilhos da ausência. Lembro a poeira dos caminhos que não levam a destino nenhum. Tento recolar os despojos de Lugares erguidos no meio do nada.

Lameirinha, Rochas, Almaceda, Ingrenal, Partida, são bastiões de resistência ao galopar dos séculos. Ali, naqueles Santuários de silêncio e de paz, vive gente. Gente, alguma dela, que já percorreu os caminhos da Europa e do mundo. Regressaram às raízes. E, de novo, pela mão invisível do Destino, reiniciaram o seu penar. O lenço negro na cabeça. O cântaro com que se vai à fonte. A enxada com que se revolve as vísceras da terra, agora que o outono promete preciosa ajuda com a aparição das chuvas.

Tudo pela Graça de Deus - dizem. É assim que, ao domingo, na pequena capela dos povoados, agradecem a sobrevivência. Ele, o padre, cansado de tantas andanças a pregar a Palavra do Senhor, vai desfiando a ladainha acompanhado pelas mulheres mais idosas, com o vincado sotaque da Beira Baixa.

Agora que uma mosca enorme e ruidosa esvoaça no meu escritório, num zunido irritante, também o meu pensamento voa até Almaceda, aldeia perdida entre vales e montanhas. Tenho lá vários amigos. Da tal gente que conheceu outros horizontes e que de novo atracou nas margens da terra que foi seu berço. Um deles, é o José Rodrigues. Sempre que me vê, é obrigatória uma visita ao café, ali na curva da estrada.

Encalha sempre, ou quase sempre, neste porto de abrigo, para dois dedos de conversa. Enquanto vai bebendo pausadamente uma cerveja, fala-me das colmeias, das suas terras de cultivo e das querelas entre vizinhos por este ou aquele motivo de somenos importância. Um dia, surpreendentemente, falou-me de Franz Kafka e da sua escrita complexa e pesada. Olhando a ponta do cigarro e o copo por onde vai bebendo em pequenos tragos, iniciou um extenso monólogo, que ouvi em silêncio.

Falou-me de “A Metamorfose”, livro que o marcou e que prometeu emprestar-me. Depois partiu, não sem me dizer que se está a apaixonar pela escrita de Stefan Zweig e da vez que em Lisboa, cidade onde viveu muitos anos, conheceu e dialogou com Saramago.

E eu, que bebi até à última gota, toda a paixão do José Rodrigues pela leitura, ao enxotar a mosca impertinente que pousou no meu candeeiro da secretária, recordei aquele episódio numa tarde pasmada de verão.

Agora, sempre que um inseto atrevido invade o meu espaço de meditação, lembro-me dele e da perplexidade que é para mim esta sua metamorfose de vida. O regressar ao seu pequeno refúgio beirão, deixando para trás o sonho que para muitos é a capital lisboeta. Já menos surpresa me causa, ele não vestir o seu fato domingueiro para ir à missa. Porque o José Rodrigues, não é homem de abraçar causas místicas. Convive melhor com as realidades cruas da vida.
Quito Pereira           

19 comentários:

  1. O evocar as vidas das pessoas que te rodeiam,entrecruzas as histórias passadas e as mais recentes
    que acompanho com interesse.
    O José Rodrigues é um entre tantos que conheceu outros mundos e se interessou pela leitura de bons autores.Apendeu em suma!
    De novo no seu local de origem,informou e sensibilizou os seus antigos companheiros para algo "construirem" para a mudança das vidas cruas...Agitou as consciências.
    Assim espero que tenha acontecido...

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    1. Também tens esse papel de metamorfesear aí tal Joaquim Rodrigues...
      A coerência e consequência do nosso pensamento têm que nos fazer activos e participativos!

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  2. Mais um excelente texto em que nos relatas a aspresas do meio que te rodeia e no qual sobressai o Rio Ocreza que se tornou num leito seco! Mas as gentes dessas paragens vão resistindo e habitando algumas dessas aldeias e que também são refúgio de alguns que tendo andado por outras paragens sentem nostalgia do passado e a elas regressam, nem que seja em visitas breves! E há sempre algum amigo para conversar, como neste caso José Rodrigues, homem letrado e com quem dará prazer em conversar!
    Um abraço

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  3. Como resume as tuas crónicas, de forma excelente, o Jornal do Fundão: Beiras

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  4. O Quito vem-nos tocar numa realidade da vida que é o apego à terra aonde nascemos. Muitas vezes as pessoas partem por os mais variados motivos mas têm sempre a ideia do regresso, pelo menos por algum tempo. Nos que ficaram dentro do país, a distância é curta e fácilmente voltam à terra. Nos que foram para o estrangeiro, a realidade salta depressa à vista pois só os que práticamente não têm filhos, voltam à terra. Os filhos gostam muito da terra dos pais e da terra aonde nasceram mesmo que tenham emigrado com os pais, são bem recebidos nas origens mas é no novo porto dos pais aonde fizeram amigos e ganharam as suas raízes para o futuro. Conheço o caso de um filho que disse ao pai que para um dia mais tarde querer voltar como os pais, então ficava por aqui. Como tal não está na nossa forma de ser, os pais acabam por ficar uma vez que raríssimamente abandonam os filhos, mesmo adultos.
    No caso do senhor José Rodrigues que resolveu regressar à terra, encontra no Quito um porto de acolho para falar da sua vivência local mas sem esquecer as recordações de uma Lisboa aonde pôde cultivar-se e dar-se com certas pessoas do seu género. Isto acontece com quase todos os emigrantes que quando estão fora, sentem a saudade da terra e quando regressados, por motivos dos mais diferentes vêm-lhes as saudades dos locais que habitaram, mesmo que não o digam. Encontrar uma pessoa atenta, com a forma de ser humana do Quito e que até vai aos seu encontro, é uma benção que lhe bate à porta.

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  5. Um dia virá em que um outro qualquer José Rodrigues, no mesmo café da mesma curva da estrada, em Almaceda, conversará com um qualquer seu amigo e dirá, pausadamente, por entre dois goles de cerveja, que andou a ler Kafka, Stefan Zweig e Quito Pereira.

    Explicará que gostou mais dos dois últimos, cuja narrativa tem muitas semelhanças
    Um pouco menos do primeiro que transmite os seus pensamentos profundos de forma hermética e dificil.

    Porque Kafka era um pensador, um lutador de causas, um panfletário.
    E porque Stefan Zweig, era um escritor multifacetado que vagueava pela poesia, pelo drama, pelo romance e, especialmente, pela narrativa

    E dirá que a escrita deve ser clara, simples e atractiva de forma a ser apreendida e sentida pelos leitores.
    E concluirá que Quito Pereira, nessa Arte era um mestre...

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  6. É tempo de agradecer a todos os que me acompanham nesta catarse beirã. São quase sempre os mesmos. Talvez por isso, quando falta algum, fico tenso. Não com os que vejo todas as semanas e que vão partilhando comigo as suas alegrias, angústias e preocupações. Mas daqueles que estão mais longe e que me fazem pensar que alguma doença ou tragédia os possa ter afetado.

    Afinal, andamos todos feridos com o que vai acontecendo a alguns amigos e filhos dos nossos amigos. Eles, os filhos dos amigos, são também um pouco de nós, porque há um afeto que nos une, mesmo que com eles apenas tivessemos privado através de uma onda sonora.

    A vinda do Chico Torreira e do Felício a este texto "aliviou-me". Não porque esteja à espera de palavras amáveis. Mas porque "obrigatoriamente" sempre aparecem e a sua falta faz-me, como vos disse, ficar perplexo e preocupado.

    O José Rodrigues, vive em Almaceda, E vive um drama. Habituado que foi durante 4O anos a trabalhar num emblemático Hotel de Lisboa de outras eras - o Tivoli - onde conheceu gente ilustre, vê-se agora atrás de uma montanha, sem ter com quem falar do que gosta de falar: livros e autores.

    Por isso, gosta de vir ter comigo. Não naturalmente porque eu seja um homem letrado, que não sou, mas porque ele acha que eu passo um pouca a fronteira do que ele está habituado nas conversas de aldeia, aquém daquilo do que ele gosta de conversar,

    Tenho plena consciência que a minha escrita é um fardo para quem lê. Mas não me peçam para pintar com cores garridas o que é intrinsecamente cinzento. Nos meus verdes anos, eu lia Namora. Agora, que também eu aterrei numa nave de pedra, maior dimensão dou à sua obra, às suas reflexões e ao seu penar.

    Mais uma vez a todos agradeço a colaboração com as vossas opiniões ...

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    1. Se fosse fardo não leria...
      A minha sinceridade é muito verdadeira.
      Escreve,escreve sempre!

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    2. Quito,
      Não te fies da minha ausência pois muitas vezes nem venho ao blogue, pelo mais diversos motivos. De vez em quando até se passam dias e não há nada de especial.
      Se a tua escrita fôsse um fardo, eu parava de lêr os teus contos. Simples e realista.

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  7. A tua sensibilidade está na razão directa da tua forma de escrever.
    O comentário que fizeste é a prova disso.
    Porque escrever bem só se consegue quando se é sensivel, perspicaz e observador.

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    1. É como tu...sensível,perpiscaz e observador!
      Nós os outros( eu) também o somos mas a capacidade de expressão escrita e oral é que diferente,,,má.
      Apesar disso apreciamos(aprecio) muito o que escreves por reconhecer que tenho as capacidades que referes.
      É muito redutora a tua apreciação pois também não é bom leitor que não possuir tais "requisitos"...Concordas ou nem por isso?

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    2. A criatividade,imaginação,fantasia,sonho,pragmatismo,cultura intelectual e pragmática são condições fundamentais também para saber escrever bem...claro,na minha opinião.
      Tudo isso possues e o Quito!
      Escrevam,escrevam...Nunca deixem enferrujar essa fantástica capacidade!

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    3. Se leres bem, Olinda, verás que a minha apreciação não é redutora.
      Referi-me a quem escreve, não a quem lê.
      E a asserção não é universal. É particular.
      Explicando melhor:
      O que eu disse é que para se escrever bem é preciso ser-se sensivel, perspicaz e observador como o Quito é. Isso significa que, sem essas qualidades ele não escreveria bem, como escreve.
      Não se extrai daí que ele não tenha ( e tem ) outras qualidades.
      Que, porém, quanto a mim, são complementares das primeiras. Estas é que são essenciais, mas não exclusivas.

      Como disse acima, não me referi aos leitores, porque a apreciação que fiz era ao escritor Quito.
      Obviamente que os leitores, desejavelmente, devem possuir qualidades idênticas. Mas não era isso que estava em causa na minha apreciação.

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    4. Redutor poderá ter sido exagerado mas quando se escreve,penso eu,tem-se em conta os leitores e é nesse sentido que também o leitor tem que ser apreciado...é claro,que entendi que te referias a quem escreves...Eu é que introduzi um dado novo--o leitor.
      Sabes que gosto imenso de dialogar mesmo sobre estas questões e não tem o sentido de critica...A troca de opiniões é saudável e sei que comungas da mesma ideia.

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  8. Todos temos sensibilidade para te compreender e às personagens reais ou fictícias que nos apresentas...
    Apenas não somos tão bons a manifestá-la porque cada um tem a sua forma de saber expressar-se na escrita.
    E a tua sensibilidade é sentida sempre quer seja presencial ou através dos teus textos.
    Por isso, estamos(estou) sempre à espreita que apareça um novo texto....

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  9. Uma reflexão do comportamento de um chamamento humano do regresso às raízes!
    A mosca foi o ponto de partida para te lermos. Abençoada!

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  10. Ainda bem que te aliviaste antes de vires para Coimbra....
    Disse!

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