sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O SEGREDO ...







 Naquela noite fria em Trás – os Montes, à luz coada de dois ou três candelabros do solar setecentista, enquanto as cartas do jogo do “King” deslizavam sobre o pano verde da mesa, um pequeno grupo de antigos militares confraternizava no doce remanso de um serão tranquilo. Beberricando em pequenos tragos uma Aguardente - Velha ao crepitar da confortável lareira, o antigo Capitão da Companhia de Cavalaria, hoje General na reserva, olhava as cartas que tinha na mão, meditabundo. Já no final do jogo, na sua “festa”, ia ouvindo o que os outros tinham para lhe oferecer:

- Uma vaza – disse eu, pouco profissional e a forretice do costume...

- Ofereço duas vazas - disse o Pulido, a mexer-se nervosamente na cadeira, como se estivesse na barra de um tribunal a defender os interesses de um seu cliente …

- Olhe, General Cadavez … três vazas … mas fico-me por aqui e já estou a ser muito generoso … – dizia o Miranda Ferreira, a olhar para o jogo “pesado” que tinha na mão …

 Depois fez-se silêncio, até que o Miranda, com o seu inseparável cachimbo e um sorriso bonacheirão, alheou-se do jogo e fez uma declaração bombástica de um segredo bem guardado que durava há quase quatro décadas e que só o ex-comandante desconhecia:

- Meu General, sabe quem é que naquela tarde roubou o Jeep do exército em Bafatá, que tanta tinta fez correr? … olhe … fui eu e o Solano de Almeida … já não tínhamos transporte para o Gabu naquele dia, o Jeep tinha a chave na ignição, estava mesmo ali à mão de semear e …

- … e vocês são completamente loucos … desarmados … podiam ter sido apanhados à mão pelo inimigo – dizia o antigo Comandante, que não tirava os olhos das cartas que tinha entre os dedos em forma de leque …

- Pois … é verdade - dizia o ex-militar a soltar baforadas de fumo do cachimbo que mais parecia uma chaminé - verduras da juventude … mas agora o General já não pode dar-nos uma “porrada”, como se diz na gíria militar …

- Posso pois … estou sempre a tempo de o fazer, disse o Cadavez, sem desmanchar o seu semblante sereno: … como não me ofereces as oito vazas, vamos jogar para nulos

E o Miranda Ferreira - perante o sorriso comprometido dos parceiros de jogo, que sempre souberam dos autores da façanha de Bafatá - lá fez uma catrefada de pontos “negativos” …
Quito Pereira   

   

15 comentários:

  1. A imagem trouxe-me instantâneamente à memória os jogos de sueca na primitiva sede do Centro de Recreio Popular do Bairro.
    Ali assisti, e algumas vezes participei, a várias partidas jogadas com o Leite Braga.
    Numa delas, lembro-me de o trunfo ser espadas e quando ele se aprestava para recolher a vasa por ter jogado o Ás de Espadas, ficou surpreso quando o Sérgio, da equipa adversária, batendo com os nós dos dedos na mesa, atirou outro Ás de Espadas, dizendo:
    - Calma aí, Sr. Leite Braga, desculpe lá mas a vasa é minha que joguei o Ás de trunfo!
    - Hoje estou com um azar do caraças, resmungou o Leite Braga. Nunca tal me tinha acontecido...

    Quanto ao jogo de King que o Quito conta, ele encerra um aforismo antigo:

    Tandem obtinet justitia
    ( A justiça pode tardar, mas não falha.)

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  2. Por falar em jogo de cartas, é incontornável não falar no saudoso Senhor Silva, pai do Campante, e das suas explosões de "cólera" no Centro Velho, quando o seu parceiro de jogo metia uma manilha a destempo. Até o Senhor Donário se baixava atrás do balcão dos tremoços e dos pirolitos, como se estivesse nas trincheiras da 1ª Grande Guerra. Era uma zaragata tal, que os sócios que estavam no 2º andar a ver a TV, desciam as estreitas escadas para o rés-o- chão, como se houvesse alarme de terramoto. Bons tempos ...

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    1. Não jogava mas acompanhava as mesas com os ditos jogadores, lambendo os dedos para atirarem com os trunfos como mandam as regras dos machos jogadores..

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  3. Tandem obtinet justitia
    Plágio partiquei mas quando me condenarem já estarei"não sei onde"....
    Quito,também sei jogar muitas variedades de jogos de cartas e penso que também "abananaria"osparceiros.Ahahahhhh

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  4. Em Portugal, não se deveria chamar a este jogo President?!

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    1. Devia sim senhor!... Não por não haver King, mas quando se joga para nulos, o nome vinha mesmo a calhar!...

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    2. Boa malha, Alfredo.
      Ainda és Moreriñas ou já regressaste?

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    3. Ah! Que bom, o céu não te caiu na cabeça!

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  5. Na tropa aprendi que nunca devemos jogar nada com o comandante!... Perdemos sempre, se não é dentro, é fora do jogo...

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  6. com "estórias simples" se compõe um texto agradável!
    Nestes vossos encontros muitas conversas interessantes se devem passar à volta da vossa vivência por terras da Guiné!
    Algumas já as ouvi,por ti ou pelo Rui Felício.Mas há um nome que me ficou sempre na memória: Mariema! Vá-se lá saber porquê!
    Já fui um viciado do KING...mas há mais de 50 anos!!!!!Eram tardadas inteiras em minha casa ou em casa do Fernando Peres!
    Agora, embora no Salão dos tempos livres do CNM, seja juntamente com a sueca, e a canasta dos jogos de cartas os mais jogados, quase sempre com discussões bem acesas, principalmente na sueca e canasta( ou canastra?), não me entusiasma jogar!Não tenho paciência para estar sentado muito tempo!
    Um abraço Quito!

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  7. Agora ri-me a bom rir :D

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  8. Ó Gonçalo explica lá porque te ris assim a bom rir!!!!!

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  9. Tempos passados até se pode falar das maroteiras da juventude irrequieta. Não haja dúvidas que o Moreirinhas tem razão, o general ganhou.
    Esta faz-me lembrar quando o pessoal no mato tinha de ir à água com a velha bomba manual, pois a água canalizada era um luxo que não se tínha direito. Um dia começaram a notar que eram seguidos e o soldado Zé, motorista que só sabia meter as mudanças com os pés na lavanca de velocidades do jeep sem arranhar pois era a sua marca de condução, sempre muito brincalhão, vivo, irriquieto e senhor de uma psicologia que admirava a todos, um dia resolveu deixar a bomba junto à água para o dia seguinte com um papel preso que dizia mais ou menos isto: " Sirvam-se mas não roubem a bomba, porque depois quem é preso sou eu." Bem... ficou lá para sempre e nunca desapareceu.

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