quarta-feira, 23 de outubro de 2013

DA ESTANTE DAS MINHAS MEMÓRIAS ...



 


 Ando mal do fígado ...

A Renault 4 L gemia o seu fado a caminho da Beira Alta. Naquele tempo, ir a Viseu era uma espécie de aventura. Nós, funcionários dos Serviços Florestais, também em número de quatro, lá nos balançávamos ao sabor das curvas, meio nauseados. A missão era espinhosa. Fazer um enfadonho inventário de um Serviço Estatal que passava para a nossa alçada. Nas curvas do Bussaco, o Queiroga, meio a dormitar apesar de serem pouco mais de onze horas da manhã, recordou o seu passatempo favorito – comer. O Carvalho também achou bem um exercício de mastigação e o António Custódio, que guiava a nave dos loucos, sorriu e acenou com a cabeça afirmativamente.

Eu não me pronunciei e apenas olhava a paisagem, percebendo que chegar cedo a Viseu, seria já vaga quimera. Dali ao Bussaco era um pulo e quando dei por mim, estava a desaguar à porta do Palace Hotel. Até ali nada de preocupante. Preocupante foi ter aparecido o gerente, o Senhor Santos, no seu fato elegante e um sorriso de franca hospitalidade. Num ápice estávamos dentro da luxuosa e cara Unidade Hoteleira, convidados para almoçar.

Fiquei gelado. Apenas trazia no bolso dinheiro para os três dias de estadia fora de casa, mas nunca para deixar a maquia logo na primeira investida gastronómica. Um drama !!! 

Já me imaginava numa rua da Viseu, a fazer de estátua, com um penso num olho comprado na farmácia da esquina, a imitar Camões e um chapéu aos pés para angariar dinheiro para comer, dado que naquela época máquinas multibanco, era ainda um sonho vago.

Perfilados à mesa com as costas cosidas às cadeiras de espaldar alto e servidos de talher de prata, eu olhava o cardápio e os preços, fazendo mentalmente contas do dinheiro que iria sobrar para os restantes dias. Táticamente, fui abolindo pratos

Recusei a sopa e bebi “Água do Luso” em vez de “Frei João” Reserva de 85. Não toquei no fenomenal pudim resguardado numa campânula de vidro transparente, que mais parecia a “Custódia de Belém”. O funcionário, de casaco branco e laço negro a roçar o queixo, debruçou-se cerimoniosamente sobre mim e disse delicado:

- V.Exª, deseja uma fatia de pudim ?

E eu respondi, contristado e a engolir em seco:
- Não, muito obrigado, ando mal do fígado …

Mas comi obrigatoriamente um bacalhau com um nome esquisito e tomei um café para a jornada.

Os meus companheiros de andanças, banquetearam-se “à grande e à francesa” e não falharam nem um bule de chá fumegante, que por acaso nem era para a nossa mesa. 

Satisfeito com o meu refrear de despesas, de novo fiquei siderado quando o amigo Santos com uma vénia pronunciada, disse que o almoço era por conta do hotel. Até me apeteceu chorar! Quase estive tentado a pedir-lhe que voltassemos ao princípio e viesse a sopa de repolho …

Chegámos a Viseu tarde e a más horas. Hospedados junto à Mata do Fontelo, em quartos separados, fui dar com o António Custódio a passear em cuecas e tronco nu no corredor dos quartos, com cara de poucos amigos.

Queixava-se que o Queiroga  tinha o rádio portátil em altos berros, que não o deixava dormir. Pé ante pé, entrei no quarto e fechei o rádio. Dei um tiro num pé !!! O Queiroga acordou e rosnou de mau feitio:
- Porra, eu para dormir tenho que ter barulho!!!.


Foram três dias, quer dizer, três noites, a ouvir a esganiçada da Antónia Tonicha e voz arrastada do Alfredo Marceneiro. À segunda noite, eu e o Custódio, tão fartos que estávamos do arraial que nem sequer era minhoto, fomos para a Feira de São Mateus.

Enquanto a escultural Dulce Pontes atuava em palco, o que nos fez pecar por pensamentos e palavras, fomos comendo, sentados numa mesa, uma sopa de grão – de - bico com cebola. Azar o nosso. A diarreia que se seguiu foi apocalítica. Ao terceiro dia, regressámos à bela Lusa – Atenas, exaustos das correrias para a latrina, com o Queiroga sempre a dormir e a ressonar no banco de trás da arruinada 4L - a fazer digestão atrás de digestão dos quilos de bifes à cortador, frangos fritos, bacalhau à Zé do Pipo, ensopado de enguias à moliceiro e cabrito à padeiro que naufragaram ao seu apetite voraz - com um palito ao canto da boca que lhe dava um ar marialva e da mais fina fidalguia.

O inventário, esse, foi feito. E eu, no bolso, para recordar a Feira de São Mateus e a Batalha Gastronómica do Bussaco, trouxe como recordação um carimbo, subtraído de uma gaveta com os seguintes dizeres: “Está conforme”.
E estava.
Quito Pereira 

30 comentários:

  1. Nada como uma Via Sacra pelo Bussaco prara te tirar do baú espisódios da tua via Sacra Profissional para botar aqui um texto nada indigesto, antes pelo contrário bem digerido por quem por aqui passar!
    Sendo assim sirvo-me do teu carimbo: Está conforme!

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  2. Está conforme, ratifica e vai assinar como Castelão de Penela, Senhor de Teres e Haveres, temente a Deus, grande fã de belas patuscadas e caminhadas pela Mata do Bussaco. Viste o Cisne Negro? Claro que não viste !!! O bicho escondeu-se, que tu e o Senhor Conde de Caria não são de fiar ...

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    1. Ele ficou foi branco, de nos ver de almas tão puras. Ora vê aqui!

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    2. Como vês o Conde Caria não quer que te falte nenhuma informação!

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    3. O Cisne negro já lá não está ? Se calhar morreu ! Era muito bonito, completamente negro e bico avermelhado ...
      Grande passeata, malta !!! ... nós também estivemos de volta de um leitão nos Fornos. Desta vez não enfiámos o barrete. Estava bom ...

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  3. Teres ainda vão dando...HAVERES nada à vista!
    Patuscada venham elas...
    Cisne preto nem vê-lo!
    O branco estava lindo e anda por aí nas fotos da caminhada!

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    1. Claro que ó Toino ..não uses a esfregona que o pc dele está em coma ...

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    2. Será desta vez que acerto?
      Já estou a ficar com nervos a mais.

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  5. Coloquei aqui um comentário e o gajo raspou-se!!!...
    Agora não sei o que é que tinha escrito!... Deve ter sido do barulho do rádio do Queiroga...
    Viajar em serviço com colegas destes deve dar vontade de mudar de emprego!

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    1. Felizmente que naquela altura ainda não havia o Toni Carreira, se não a tortura ainda era maior ...

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    2. se não ...não ..senão ...isto ainda deve ser efeito dos guinchos do rádio do Queiroga, que lhe saiu numa rifa de uma quermesse em Vouzela ...

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  6. Mas olha Alfredo que ele não me chegou por via indirecta!

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    1. Mas qual via indirecta, Rafa ??? Ainda pensas que estás nos CTT em Cantanhede, a mandar uma encomenda para a Buarcos via Praia de Mira !!!

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  7. Percurso profissional descrito com o humor fínissimo do senhor florestal...viver/trabalhar no meio das matas,choupos,pinheiros, tojos e, nos intervalos, umas boas tainadas,copos de 5...viagens com musica pimba. E o profissionalismo acima de tudo...
    Claro só podia dar uma boa recordação hilariante.

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    1. Olinda foi tudo hilariante menos a diarreia monumental por causa do maldito grão de bico ...

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    2. Ficaste limpinho!
      A mim dava-me jeito...

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  8. O gemido da 4 L nas curvas sucessivas do percurso, o belissimo e sofisticado Palace Hotel do Bussaco, a mata do Fontelo, a Feira de São Mateus, e o nacional cançonetismo então em voga nas vozes de Tonicha, Dulce Pontes e Alfredo Marceneiro, situam de forma proficiente o périplo que todos conhecemos e em que nos revemos em análogas viagens que fizémos, não por razões profissionais mas de lazer.

    Essa proficiencia é apanágio do Quito que, neste caso, tempera a viagem com rasgos de humor que a tornam mais atractiva ainda.

    Ou seja, com carimbo ou sem ele, está conforme.

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  9. Gostei da história.., só espero que na primeira pessoa a história não sejas tu!!.., aquilo no Palace Hotel era imperdoável!!!hihihihihi
    Fernando AZENHA

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  10. Nas ruas de Viseu a fazer de estátua....fartei-me de rir.
    Mais uma história do Quito de encantar.
    Um abraço.

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  11. Um relato bem carimbado e conforme o autor de textos deliciosos!
    Gostei que apenas tivessem pecado por pensamentos e palavras e não por atos ou omissões, quando viram a Dulce Pontes...

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  12. Quito como sempre mais um relato da tua vivência profissional por terras deste Portugal..Claro que me fez recordar um part-time que tive como perito de acidentes auto ,onde tive situações muito parecidas ás tuas.É sempre um gosto ler estes comentários dos nossos AMIGOS Obr

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  13. Quito, como sempre é muito bom ler os teus relatos obr e ler os comentários destes nossos AMIGOS

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  14. Como estavas doente do fígado, o grão de bico fez-te mal. Essa do Queiroga faz-me lembrar uma quando fomos à guarda representar o D. João III com a peça "O Pinta Monos". Passamos a noite todos a cantar, só que os clientes e o pessoal da pensão não gostaram!!! Tempos passados que não esquecem.

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