segunda-feira, 28 de outubro de 2013

ENCONTRO COM A ARTE

CONTOS
da Daisy


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Quanto custou? Ora, barato ou caro… dinheiro em notas ou em moedinhas reluzentes, mesmo sem sol a bater nelas… preço!… Não, a questão não é propriamente essa…
E o agente olha-me com ar desconfiado, direi mesmo, enojado-compadecido. Raios! Eu sei que não sou beleza por aí além. Até sei que o meu aspecto de velho vagabundo não é por demais agradável às pessoas que tomam duche quente todos os dias e que têm um escravo para se curvar, a limpar o chiqueiro que fizeram. Eu até sei, palavrinha, mas… mas nojo? Tomei banho, sim senhor; tomei… (pensando bem, talvez já nem me lembre, que esta cabeça já anda pelo outro mundo há muitos anos…) …E compaixão? Oiça lá: não há por aí tanta rapaziada nova agarrada a um cajado? Na minha idade, usar muleta não é nada de admirar. Que eu até já estou na terceira idade, naquela da esfinge do Édipo… Pena? De ninguém, ouviu? Ter pena é degradante; não para os outros, mas para o próprio, que se julga, assim, superior!…
Não senhor, não era pelo preço. Que as coisas, a partir de certa altura, habituando-nos nós a elas como a entes de família, deixam de ter preço. Mas…e se fosse? E se fosse caro, hem? Admirava-se? Vá, diga! que admiração?… Até podia ser bom. Por ter as calças remendadas e o casaco coçado… não poderia ter um bom chapéu? Ah, o meu chapéu!… Não, não senhor, não estou a chorar coisíssima nenhuma, que chorar já não posso. O meu chapéu, homem? Era velho. Era, era… era velho! E depois? Não, não estou a gritar. Eu é que sou um pouco surdo… e preciso de me ouvir. Quando a gente já não se ouve, é muito triste…
Preto? Que preto?… Branco. Branquinho, branquinho. Bem… um pouco sujo. Tinha medo de o estragar… e um chapéu daqueles!…
Eu não choro, não, mas… o meu chapéu?
Não senhor, não quero nada ficar aqui. Para quê? Eu só queria o meu chapéu…
Mas, oiça, não me mande para ali esperar. Que eu já sei como são essas coisas… A senhora boazinha está lá? Pois deixe-a estar. A ela mais o caldinho e o pão, pois. Que coma, que coma, que eu fome não tenho. Eu só quero o meu chapéu. O meu rico chapéu…
Que lhe interessa? Tenho onde dormir, pois tenho. E também não passo fome, já lho disse… Para que está com histórias… se eu só quero o meu chapéu…
Pronto, não há remédio: perdi-o mesmo. Meu grande mariola, estavas farto cá do velho, não era? Cansaste-te de me tapar a careca!... Também tu, não é? Mas olha que me desgostaste. Falar com o meu chapéu não é o mesmo que falar com uma pessoa… e eu até gostava de falar contigo, de conversar. Afinal, sais-te igual, igualzinho, aos outros… Que isto de saturação encontra-se ao virar de todas as esquinas. Também tu saturaste, pois foi? Como os outros. É que, no fundo, tinhas de ter qualquer coisa de humano, para eu gostar de falar contigo. Só que, se eu soubesse, não te tinha dado tanta atenção. Mas faz pena, faz pena…
Não senhor, não preciso. Eu sei ir sozinho para casa.
Adeus, minha senhora, pode ir embora também, que hoje já não deve vir ninguém para comer a sopinha. Venha amanhã, que velhos inválidos e com juízo perdido não faltam por aí. Eu estou bem… só perdi o meu chapéu. Qualquer dia até perco o dinheirito lá do meu catraio. E perco, depois a enxerga e a bucha. Ora, mas perder por perder… até me custou mais o chapéu, o ingrato, que se esqueceu de tudo o que lhe mostrei em todos estes anos… é tudo uma ingratidão!


26 de Julho de 1973


4 comentários:

  1. Um chapéu, quase humano, que nos toca bem fundo no coração e na consciência!
    Quanta sensibilidade, Daisy.
    Para nós um chapéu velho e sujo, para este homem o seu querido chapéu, diferente de todos e de qualquer um, sem preço.

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  2. A vida dá-nos o mesmo sentimento que o dono do chapéu deste conto tão bonito. Falamos com ela, tentamos conservá-la o melhor possível e de repente ela vai-se sem nos agradecer por tanto termos lutado por ela, com ela e, por vezes, contra ela. Com as pessoas também deveria ser assim! Não interessa o preço que têm, se são ricas ou pobres, se lhes damos atenção, se choramos no seu ombro ou se pelo contrário são elas que nos escolhem para chorarem ou rir com toda a vontade que existe no nosso coração. O que interessa, isso sim, é a lealdade que temos uns pelos outros.
    Parabéns Daisy

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  3. A matriz serena e conciliadora da escritora, resvala para a sensibilidade da sua escrita. Um belo texto que nos revela em como um simples objeto pessoal pode ter um valor tão particular para o seu possuidor. Há bens que, mesmo parecendo insignificantes, não têm preço.

    O Humanismo e a Sensibilidade também não têm preço. E a autora, que revela essa Sua faceta a cada passo, transmite esses valores pela palavra escrita.
    Parabéns Daisy

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  4. Numa sociedade de aparências, em que se catalogam as pessoas pelo seu aspecto, esquecemo-nos que a dignidade e a personalidade são intrinsecas a todo o ser humano e não se medem pelas roupagens, mas sim pelas atitudes e pela sensibilidade.
    E a sensibilidade deste velho mendigo era, afinal, muito mais sólida que a daqueles que o olhavam, porque, caro ou barato, novo ou velho, limpo ou sujo, aquele chapéu era o seu insubstituivel confidente com o qual partilhava os pensamentos, as angústias, as esperanças.
    Essa sensibilidade ferida, trouxe-lhe à tona a sua dignidade ao recusar a sopa que lhe era oferecida.
    Porque nem só de pão vive o homem...

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