quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

AS PALAVRAS AUSENTES ...



O xaile é a manta que envolve o luto da alma ...

Vou partir. Levo na minha bagagem de caminheiro, as palavras ausentes que me faltam, neste calcorrear de vales e montanhas, que se espreguiçam indolentes pelo pasmar dos dias. Porque elas - apenas elas - as palavras ausentes, me falam das vielas que vigiam os meus passos perdidos. Estreitas e escuras, olham-me do eterno crepitar do Tempo. Resistiram ao penoso caminhar dos séculos. É o seu silêncio soberano, que me acorrenta o pensamento e me tolhe a alma.

Passo a passo, como que a medo, percorro a aldeia soturna. Olho as portas cerradas e abandonadas ao estertor do encadear dos dias que passam. Sentado no regaço de pedra da fonte centenária, relembro com respeito e saudade, o esplendor de tempos de antanho, quando o sol radioso de bonança, brilhava no céu beirão e entrava pelas portas e janelas da aldeia plena de vitalidade e de cor. Agora, tudo morreu. Apenas portas fechadas. Apenas janelas fechadas. Apenas uma brisa agreste, que varre as ruas despidas de gente e de vida.

Ali, naquele pátio modesto, já nem adivinho sequer, o bater vivo e ritmado do martelo, na loja do ferrador. Acolá, aquela nora carcomida pela ferrugem, foi tragada por um monte de silvas e ervas daninhas. Jaz agora, inerte, na solidão dos dias emprestados. O futuro partiu. Resta a memória.

No chão, em redor do poço que trazia a água que é o alimento da terra, apenas pesquiso na terra batida e ressequida, indícios do caminhar paciente do pequeno rocinante, no labor das manhãs de rega.

O ecoar metálico do sino, fere o silêncio da aldeia e percorre em vagas sonoras cada vez mais esbatidas e distantes, as léguas de vastidão do vale. É quando o dia já resvala para a escuridão da noite, que aquele lago adormecido em paz, ganha algum movimento. Das casas, das pequenas casas, como por mistério, as portas gemem devagar nos gonzos e, em surdina, amparadas nas bengalas ou envoltas no xaile negro que é a manta que envolve o luto da alma, as mulheres idosas, de olhos postos no chão e rosto austero, caminham em direção da pequena igreja de paredes imaculadamente brancas, para ouvirem a Palavra do Senhor, dita num murmúrio de muitas vozes, quase um velado queixume.

São as labaredas da alma, de gente simples e sofrida. São vidas ausentes, ditas por palavras ausentes …
Quito Pereira
       

9 comentários:

  1. Considero o texto como o cenário, uma espécie de envolvente do leitor no ambiente que se vive na região que o olhar atento do Quito prescruta,sente e nos transmite na perfeição, com abundantes pormenores que nos não deixam escapar-lhe.
    Mas, tal como num teatro que abre o pano e nos mostra apenas a cenografia, ainda sem actores nem diálogos, preparando-nos para o desenrolar da acção, assim considero que o âmago da peça só vem depois, completando o cenário e dando-lhe vida.
    Esse é o enredo, essas são as palavras ausentes, esse é o sliêncio sob o qual refletimos e aprofundamos as palavras ditas...

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  2. _-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
    Beijinho

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  3. O Futuro partiu. Resta a memória.
    Uma verdade que dói. Ainda hoje vi na TV, a despedida no aeroporto de mais 50 licenciados a caminho da Inglaterra. É o nosso futuro que parte.

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  4. Suportei até agora o SILÊNCIO como comentário ao teu nostálgico texto pois era interiorização genuína das vidas ausentes...
    Fiz este exercício de comunicação mas como me é difícil enfrentar muito tempo essa forma de explicitar sentimentos,reconhecer a tristeza de vidas já sem sentido e ainda pensar que tu,Quito,poderias interpretar como uma brincadeira da minha parte....E de facto só agora escrevo sobre as palavras doridas que atravessam o texto porque fui ao cabeleireiro e não pude vir mais cedo e enveredar pelas palavras presentes.Quito,como te compreendo a tua intra e inter-relação com o quotidiano das pessoas dessa aldeia.

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  5. Olinda
    Comentaste as palavras ausentes, com a ausência das palavras. Até achei interessante essa forma com te exprimiste. O céu povoado de nuvens negras, o vento e a desertificação, ajudam a compor um quadro de nostalgia.Ontem, deambulei por aldeias, ao cair da noite. Só gente idosa. Uma outra realidade do nosso Portugal português. Gente esquecida, para quem o futuro partiu. Desgraçadamente, muitos deles, já nem sequer vivem de memórias.
    Um abraço ...

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  6. O retrato que nos ofereces é comum a muitas regiões do país, especialmente do interior, de norte a sul. O futuro partiu há muito, desde a década de 60. Foi o êxodo rural. Muitos analfabetos, outros com os primeiros anos de escolaridade. Nos nossos dias, assistimos à saída das nossas gerações mais jovens, as mais bem preparadas de sempre, da aldeia e da cidade! Dói mesmo! Este país é pra velhos!

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  7. Mas tudo vai mudar!! A Cristas vai ser cognominada a Povoadora!!!
    Alegra-te Quito que vais mudar o sentido dos teus textos. O regresso dos novos de enxada na mão. As tascas vão novamente ser ponto de encontro para conversas sobre a cultura dos tomates e rabanetes. O sol vai novamente brilhar substituindo as nuvens carregadas de tristeza!
    Como vês, sonhar é fácil!

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  8. Só agora, já noite cerrada, leio o texto do Quito.
    Creio ter escolhido, ou antes, aconteceu na hora em que as palavras ganharam maior dimensão, e se tornaram esclarecedoras fazendo todo o sentido o que nos transmitia o autor.
    Revi as noites em que também eu ia ao mês de Maria, único motivo para sair um pouco à noite, em 1960, na aldeia onde fui colocada.
    O meu silêncio permanece, fico pensativa, a ideia da partida baila-me no pensamento!
    Há dias assim....

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  9. Agradeço a quem se deu ao trabalho de comentar o texto. Da forma muito interessante como Felício o "viu" e entendeu. O desabafo do Alfredo, nesta tragédia da separação das famílias, na procura de trabalho além fronteiras.Da maneira sempre apaixonada como a Olinda emite as suas opiniões. A opinião desassombrada e até de lamento da Lena Morgado. O optimismo do Fernando Rafael. O comentário da Celeste Maria, que conseguiu, pela sua experiência de antanho, "vestir" a pele do autor e perceber das suas reflexões e angústias ...
    Obrigado a todos ...

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