sábado, 15 de fevereiro de 2014

PERCURSOS DO FADO DE COIMBRA

OUVINDO ANTERO
  

                “Em  Coimbra,  uma   noite,   noite  macia  de  Abril  ou Maio…,atravessando  lentamente  com  as   minhas  sebentas na algibeira o Largo da  Feira, avistei sobre as escadas da Sé  Nova, romanticamente batidas  pela lua, que  nesses  tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava.
A sua face, a grenha densa e loura com lampejos fulvos, a barba de um ruivo mais escuro, frisada e aguda à maneira siríaca, reluziam, aureoladas. O braço inspirado mergulhava nas alturas como para as revolver. A capa, apenas presa por uma ponta, rojava por trás, largamente, negra nas lajes brancas, em pregas de imagem. E, sentados nos degraus da igreja, outros homens, embuçados, sombras imóveis sobre as cantarias claras, escutavam, em silêncio e enlevo, como discípulos.
Parei, seduzido, com a impressão que não era aquele um repentista picaresco ou amavioso, como os vates do antiquíssimo século XVIII – mas um bardo. Um bardo dos tempos novos, despertando almas, anunciando verdades.
O homem com efeito cantava o Céu, o Inferno, os mundos que rolam carregados de humanidades, a luz suprema habitada pela ideia pura, e, deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que murmurou, por entre os lábios abertos de gosto e pasmo:-É o Antero!...
Deus conversava com Garrett. Depois, se bem me lembro, conversava com Platão e com Marco Aurélio. Todo o Céu era uma radiante academia. Os santos mais ilustres, os Agostinhos, os Ambrósios, os Jerónimos, permaneciam fora, pelos pátios divinos, sumidos numa névoa subalterna, como plebe imprópria a penetrar no concílio dos filósofos e dos poetas.(…)

Então, perante este Céu onde escravos eram mais gloriosamente acolhidos que os doutores, destracei a capa, também me sentei num degrau, quase aos pés de Antero que improvisava, a escutar, num enlevo, como um discípulo. E para sempre assim me conservei na vida.
Eça de Queiroz.

               Maria
Tenho cantado esperanças…
    Tenho falado d´amores…
… Das saudades e dos sonhos
Com que embalo as minhas dores…

Entre os ventos suspirando
   Vagas, ténues harmonias,
Tendes visto como correm
 Minhas doidas fantasias.

E eu cuidei que era poesia
   Todo este louco sonhar…
   Cuidei saber o que é vida
   Só porque sei delirar…

Só porque a noite, dormindo
    Ao seio duma visão,
  Encontrava algum alivio,
   Meu dorido coração,

   Cuidei ser amor aquilo
      E ser aquilo viver…
Oh! Que sonhos que se abraçam
     Quando se quer esquecer!
  Eram fantasmas que a noite
     Trouxe, e o dia já levo…
   A luz d´estranha alvorada
Hoje minha alma acordou!

Esquecei aqueles cantos…
    Só agora sei falar!
Perdoa-me esses delírios…
    Só agora soube amar

Antero de Quental


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