OUVINDO ANTERO
“Em Coimbra, uma noite, noite macia de Abril ou Maio…,atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da Feira, avistei sobre as escadas da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, que nesses tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava.
“Em Coimbra, uma noite, noite macia de Abril ou Maio…,atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da Feira, avistei sobre as escadas da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, que nesses tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava.
A sua face, a grenha densa e loura
com lampejos fulvos, a barba de um ruivo mais escuro, frisada e aguda à maneira
siríaca, reluziam, aureoladas. O braço inspirado mergulhava nas alturas como
para as revolver. A capa, apenas presa por uma ponta, rojava por trás,
largamente, negra nas lajes brancas, em pregas de imagem. E, sentados nos
degraus da igreja, outros homens, embuçados, sombras imóveis sobre as cantarias
claras, escutavam, em silêncio e enlevo, como discípulos.
Parei, seduzido, com a impressão
que não era aquele um repentista picaresco ou amavioso, como os vates do
antiquíssimo século XVIII – mas um bardo. Um bardo dos tempos novos,
despertando almas, anunciando verdades.
O homem com efeito cantava o Céu,
o Inferno, os mundos que rolam carregados de humanidades, a luz suprema
habitada pela ideia pura, e, deslumbrado, toquei o cotovelo de um camarada, que
murmurou, por entre os lábios abertos de gosto e pasmo:-É o Antero!...
Deus conversava com Garrett. Depois,
se bem me lembro, conversava com Platão e com Marco Aurélio. Todo o Céu era uma
radiante academia. Os santos mais ilustres, os Agostinhos, os Ambrósios, os
Jerónimos, permaneciam fora, pelos pátios divinos, sumidos numa névoa
subalterna, como plebe imprópria a penetrar no concílio dos filósofos e dos
poetas.(…)
Então, perante este Céu onde
escravos eram mais gloriosamente acolhidos que os doutores, destracei a capa,
também me sentei num degrau, quase aos pés de Antero que improvisava, a
escutar, num enlevo, como um discípulo. E para sempre assim me conservei na
vida.
Eça de Queiroz.
Maria
Tenho cantado esperanças…
Tenho falado
d´amores…
… Das saudades e dos sonhos
Com que embalo as minhas dores…
Entre os ventos suspirando
Vagas, ténues
harmonias,
Tendes visto como correm
Minhas doidas
fantasias.
E eu cuidei que era poesia
Todo este louco
sonhar…
Cuidei saber o
que é vida
Só porque sei
delirar…
Só porque a noite, dormindo
Ao seio duma
visão,
Encontrava algum
alivio,
Meu dorido
coração,
Cuidei ser amor
aquilo
E ser aquilo
viver…
Oh! Que sonhos que se abraçam
Quando se quer
esquecer!
Eram fantasmas
que a noite
Trouxe, e o
dia já levo…
A luz d´estranha
alvorada
Hoje minha alma acordou!
Esquecei aqueles cantos…
Só agora sei
falar!
Perdoa-me esses delírios…
Só agora soube
amar
Antero de Quental
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