Rangeu os dentes e deu três voltas na tumba ...
Hoje, olhando pela janela do Tempo e meditando no meu
passado, encalhei na Rua de Tomar, ao correr das muralhas sombrias da
Penitenciária Coimbrã. Foi ali, naquela velha rua que dá acesso a uma entrada
lateral do Jardim da Sereia, que um dia dobrei o portão de ferro de um Colégio
de nome pomposo – Dom João de Castro.
Muita gente lá conheci e ainda agora, num esforço de memória, os recordo. À maioria, perdi o rasto. Aos outros – poucos - reconheço - os nas ruas de Coimbra.
Muita gente lá conheci e ainda agora, num esforço de memória, os recordo. À maioria, perdi o rasto. Aos outros – poucos - reconheço - os nas ruas de Coimbra.
Há tempos, encontrei o angolano Valera. Está modificado.
Muito diferente do seu porte esguio de outras eras. A vida passou por ele,
deixando as suas marcas.
Afinal, a mesma chancela que deixa na maioria de nós. Tinham passado quarenta longos anos, desde a nossa juventude. Depois, cada um partiu à sua vida. Lembrei-lhe as patifarias estudantis do nosso passado, naquele estabelecimento de ensino. E ri. O Valera, que agora vive em Luanda, também riu. Depois, emocionou-se e chorou.
Foi lá, no Dom João de Castro, que conheci o professor e
antigo tenente do exército, Teles Grilo. Fumava como uma chaminé, embirrava
comigo às vezes e sabia muita matemática … para ele. E era profundamente
distraído. Mas, sejamos justos, os alunos simpatizavam com o professor.
A única vez que não lhe achei graça nenhuma, foi quando empoleirado num
banco de pedra no Jardim da Sereia, eu declamava Vaz de Camões, a naufragar nos
mares de um estado de alma sombrio de uma paixão dilacerante … “Alma minha
gentil que te partiste …”. Foi a Alma Gentil a partir e o Teles Grilo a chegar,
de cana na mão em riste, qual carga da Brigada Ligeira de Cavalaria do General
Custer.
A mim e a outros, alunos do Colégio Dom João de Castro.
Decididamente, naquela manhã em que um sol coado e risonho penetrava por entre
as copas do denso arvoredo, a lírica Camoniana foi varrida a cana da Índia, e o
Príncipe dos poetas portugueses rangeu os dentes e deu mais três voltas na
tumba.
Mas em verdade Vos digo, porque a honestidade assim me exige,
que nunca por lá vi o Rui Felício, a fugir à frente do Teles Grilo. Ou do Queiroz,
professor de Geografia e exímio lançador do dardo, quer dizer, da cana. O Rui Felício
era de outra estirpe, de outra linhagem, tenho que reconhecer.
O Rui, era mais camisa de seda, gravata de cetim e sapato de
luzidio verniz, com que se passeava garbosamente pelos salões dourados e
janelas forradas de pesados cortinados de veludo carmesim, nos bailes do Clube Recreativo
do Calhabé, ao som de valsas Danubianas, com lindas donzelas a olha-lo,
melancólicas, por detrás dos leques coloridos, com que se abanavam
freneticamente, de peito a arfar de desfalecimento, com os corações em brasa. O
futuro advogado de Coimbra, não se misturava com a tropa fandanga de farristas
e namoradeiros do Jardim da Sereia, que não trocavam uns olhos verdes pestanudos
ou um cabelo louro aos caracóis, pela bestialidade enfadonha dos azares de
Maria Antonieta ou de uma intrincada e desmoralizante equação matemática.
E ao recordar estas passagens de um quotidiano coimbrão de
outrora, não posso deixar de sorrir. Afinal a forma de me lembrar – hoje com
saudade - das intempestivas aparições do Tenente Grilo pelos Jardins da Sereia,
local ideal e refrescante para aulas de anatomia comparada, de que o Colégio
Dom João de Castro tinha - que não eu, que nunca passei de um apagado e obscuro
bedel - reputadíssimos professores catedráticos …
Quito Pereira
As tuas recordações, levam-te a imaginar coisas que não lembra ao diabo!…
ResponderEliminarValsas Danubianas nos bailes do Clube Recreativo do Calhabé… e donzelas por detrás de leques coloridos!!!… Fizeste-me rir a bom rir, vê-se mesmo que nunca pisaste o chão do salão do CRC.
Olha,Alfredo estou de contigo no que dizes no teu comentário.
EliminarRecordações com tanta fantasia do Quito dá-nos prazer lê-las!
Ele nunca lá meteu os pés pelo que disse!!!
EliminarFernando AZENHA
e
Foi com certeza inspirado neste bonito dia de sol, que alegremente nos brindaste com mais um lote de recordações de tantos dos que tens partilhado connosco!
ResponderEliminarGostei do ar leve, descontraído e engraçado, com que pontualmente e com o pormenor que te é característico, nos puseste a par de mais uma das peripécias da vossa juventude.
Bom dia, beijinho!
Alfredo, ao CRC fui na minha juventude, por duas ou três vezes. A minha mente está a ficar delirante e, se calhar, isto só passa a provar umas alheiras de Trás-os-Montes e estou esperançado que seja em breve ...
ResponderEliminarIgualmente um beijo para ti, Teresa. Goza bem este dia de sol ....
Quito, este Teles Grilo não foi gerente do B.B.I., na portagem?
EliminarFernando AZENHA
.
Raramente aqui venho, pois quase tudo, que é aqui publicado, nos aparece no FB(preguiça de mudar de canal). Apenas quando o primo "Biána", me chama a atenção, para cá vir "espreitar" e comentar algo, se algo me apetecer, por gostar do tema. Este chamou-me a atenção, p'los nomes do título, como sejam Camões e Grilo.
ResponderEliminarGostei do comentário do Alf e quase nada ele me deixou, para dizer...só não entendi, como aparece o Rui Felício, de repente, neste filme, i. é., conto!!! Abraço.
Ju
ResponderEliminarO Rui, tal como eu e o Valera, foi aluno do Dom João de Castro. Daqueles tempos, há muitas recordações. O facto do colégio feminino Alexandre Herculano, ser a escassos cem metros do D. João de Castro, fomentava os namoricos e as fugidas para o Jardim da Sereia. E dos professores que andavam à procura dos desertores das aulas. Relembro esses tempos, que ainda me fazem sorrir.
Este texto, não é mais que uma brincadeira entre amigos que se estimam, revivendo aquele passado num Colégio que há muito fechou as portas. Aos professores Teles Grilo e Queiroz, já desaparecidos, a minha homenagem ...
Obrigada Quito, por me esclareceres. Não há dúvida, que sem falar as pessoas, não se entendem. Não deixaste escapar, que o Rui Felício, também tinha andado, nesse Colégio. Imaginei-o sempre "de Liceu" D. João III. Assim já entendi. Outro abraço.
ResponderEliminarObrigado Ju, por dares o teu contributo. Mudando de tema, a Serra da Estrela que daqui observo neste dia de sol magnífico, está fantástica, coberta de uma neve brilhante de cimo ao sopé da serra. Uma delícia para os olhos ...
ResponderEliminarUm abraço
Eu sou mais bolos sem doce, mas ri a bom rir.
ResponderEliminarBons tempos.
Tonito.
António, nós somos mais para o "Portas da Ravessa" reserva de 99 ...
EliminarFaz bem relembrar o passado e com ele sentirmos que quando se é jovem, muitas dessas aventuras passadas com amigos que ainda hoje convivemos, dificilmente se apagam da memória.
ResponderEliminarSim o Rui Felício também me parece que era, não mais bolos, como diz o Tonito. mais virado para os bailaricos do Recreativo da Calhabé! Não sei se o reclame muito ouvido "A Fama vem de longe"... foi inspirado nele! A tropa fandanga era mais "pevides" do fininho ou do calmeirão...
Pois eu não tenho destas aventuras colegiais, pois não me davam rédea solta, quer no São Paulo ou mais tarde no São Pedro.Era uma zona bem recheada de colégios se contarmos com os femininos de Alexandre Herculano e Santa Cruz.
Outros tempos!
"A tropa fandanga era mais "pevides" do fininho ou do calmeirão" ...
EliminarDisseste tudo, Rafael ....
MAS ONDE É QUE RAIO PÁRA O FELÍCIO ??? SE CALHAR FOI NAMORAR PARA A SEREIA !!! RAFA, LEVA A CANA DA INDIA E VAI À PROCURA DELE !!!
O Felício, tem estado no Face, onde publicou mais um conto, que tem dado brado, do bom!!! Ainda deve, por lá estar a ler e a responder a comentários.
ResponderEliminarFeisssibuqeiro, já lá vou!
ResponderEliminarCorri, corri por ali abaixo e não o encontrei.Vou bater-lhe à porta!
ResponderEliminarClaro que não fui! Caí na real!
EliminarUm abraço Rui!
Gostei da sensibilidade como o Quito descreveu em pouco espaço saudades do meu tempo.
ResponderEliminarO Tenente Teles Grilo conhecido como o mudo pelos os alemães, conseguiu fugir a eles na frente francesa com outro mudo pois não falavam alemão, pelo que me foi contado. Com setenta e dois anos, houve quem com dezasseis anos fugisse da sala de aulas e voltasse preso pelo colarinho, pois o Ten. Teles Grilo aponhou-o no último vão de escadas do D. João de Castro. Deixava-nos admirados. Todos gostavam dele. Quando um colega alertou para a fatalidade que ia por este mundo fora, veio logo uma resposta: "Cala-te menino, gazeado sou eu, andei com fome no frio e ainda não morri." Era verdade e foi por isso que me contaram a vida de prisioneiro dele. Nunca mais se esquece uma pessoa como ele.
O Dr.Queirós era muito honesto. Antes de bater com a cana começava a aumentar a vós até uma altura quase impossível e quando já não conseguia mais, lá vinha a cana de cima para baixo. Havia um alarme antes da fatalidade. Era típico.
Quanto ao Jardim da Sereia, se um dia ele falasse...
O que me lembraste com a tua prosa, Quito. Obrigado.
Vou aproveitar para ver mais umas provas Olímpicas esta noite. Adoro aquela juventude.
Foram bons tempos, Chico. O Dr. Queiroz quando estava virado do avesso, o melhor era fugir. O Tenente Teles Grilo era de facto gazeado da guerra. Todos gostavam dele e ainda o recordo como se ele estivesse à minha frente. Fico surpreso com a tua memória e com os pormenores que contas. Satisfaz-me que possas ter recordado, com prazer, aquele passado ...
EliminarTinha saudades dos teus textos, Quito. Embora o D. João de Castro fosse masculino, também gostei de recordar as tuas "andanças", porque eu também fui aluna, no D. João de Castro, do Dr Almeida e Sousa que era professor de Filosofia. Morria de medo de passar, ao fim da tarde, na Rua de Tomar. Mas tive uma boa nota a Filosofia no 7º ano. É bom recordar e partilhar, com bons amigos, tão deliciosas recordações
ResponderEliminarLó
ResponderEliminarDe vez em quando, sabe bem recordar o passado. Não de uma forma sofrida de saudade, mas com um cunho mais ligeiro. Para tal, lembrei-me de dois ex-alunos.O Valera, a quem tive o prazer de reencontrar tantos anos depois e que devo esse encontro ao Tonito. Também ao meu bom amigo Rui Felício, que se ausentou desta memória. Mas percebo o seu mutismo, que respeito inteiramente.
Um abraço
Depois da descrição do Quito só me surpreende como é que vós não ficastes traumatizados!
ResponderEliminarOdisseias com professoras também as havia no Dona Maria.
Quem não se lembra, por exemplo, da Dona Alice Porém, professora de Português, da Dona Virgínia Abreu, professora de Física, Da Dona Maria do Carmo, professora de Música, da Dona Júlia, professora de lavores...
Mas,não eram " storas", sabíamos, e ainda sabemos, os seus nomes!
Todas teríamos muito para contar.
Por motivos alheios à nossa vontade, a emissão vai ser interrompida por breves segundos...
ResponderEliminarAssifalava Neves de Sousa quando durante um relato de futebol, precisava de molhar o bico para retemperar energias.
Não foi para molhar o bico que eu ainda aqui não tinha vindo, mas foi por imponderáveis alheios a minha vontade.
É verdade que o Quito e eu pisámos o mesmo palco do D. João de Castro, mas em récitas diferentes, dada a nossa diferença de idades.
Os actores principais, cabeças de cartaz, eram contudo os mesmos, com destaque para o velho tenente Grilo.
Nas sessões em que actuei, nos sexto e sétimo anos liceais, pontificavam no mesmo naipe de actores dois grandes amigos meus, recentemente desaparecidos mas que nunca esqueço:
O Chico Duarte e o Abilio Soares.
O primeiro como verdadeiro galã que revolteava a cabeça das meninas do Alexandre Herculano.
O segundo, pensador e lider, que encabeçava, organizava e dirigia quaisquer iniciativas dos alunos do colégio que se delineassem no àmbito do associativismo.
Para não fechar as minhas reminiscências com estas referências melancólicas e tristes, não resisto a recordar o meu primeiro dia de aulas no D. João de Castro, habituado que vinha à disciplina rigorosa dos meus primeiros cinco anos no D. João III.
Na aula de apresentação da disciplina de História, ouvia o Dr. Boaventura Sousa Santos (( pai do mediático sociólogo, com o mesmo nome ) ir fazendo aos alunos, um por um, as perguntas da praxe neste tipo de aula no primeiro dia do ano lectivo.
De onde vieste, onde moras, que idade tens, se tens irmãos e quantos, o que faz o teu pai, e por aí fora...
Quando chegou a minha vez, acrescentou às perguntas de rotina uma outra, estranha e inesperada.
- Se te dissessem que ias ficar, agora mesmo, paralisado do teu lado esquerdo, o que fazias?
Fiquei sem saber o que dizer.
Tartamudeei que, se calhar, pedia para me levarem ao hospital, mas o Dr. Boaventura, achou que não era satisfatória a resposta e disse-me:
. Bem me pareceu que eras burro...
E prosseguiu:
- Então, não mudavas rapidamente os testiculos para o lado direito? Se é que sabes do que é que eu estou a falar...
Com este cartão de visita, percebi que o D. João de Castro era um caso à parte...
ResponderEliminar... à parte... direita!
EliminarDepois da roubalheira de hoje só mesmo um texto destes para me por de novo a rir. Abraço paizão !!
ResponderEliminar