terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

FOI UM TEMPO ...



Foi um Tempo ...

Foi um Tempo. É um Tempo. Um Tempo de memórias.

É penoso, o caminho da saudade. E hoje, quando a chuva bate na vidraça da janela, nesta noite de temporal, com o Outono a vestir-se de roupagens de Inverno sem o ser, recordo o meu berço Coimbrão. 

Lá em cima, por entre a ventania desta madrugada que fustiga as copas das árvores, vejo a esfinge esfumada do Castelo deste rincão da Beira Baixa. E todo aquele caudal que desce em catadupa pela avenida, leva-me a embarcar na galera dos sonhos, num rio de lembranças. Absorto nos meus pensamentos, olho aquele lençol de água, como do Mondego se tratasse.

No cais do Choupal amarrei e, cem passos adiante, olho em sentido recolhimento aquela casa amarela. Porque amarela era, naqueles tempos de antanho. Naquele ninho, dei os meus primeiros passos. 

Recordo o chão, que era em sobrado. Recordo a pequena sala onde minha avó costurava, com a face enrugada e os óculos na ponta do nariz. Recordo-lhe o humedecer da linha com os lábios, para melhor a enfiar no buraco da agulha. Na cozinha, lembro a cafeteira em cima das brasas e o cheiro envolvente do café a borbulhar, naquele ambiente acolhedor. E o fumo em espiral e fugidio, a esgueirar-se pela boca escura da chaminé.  

Lá fora, ao cair da tarde, era a canção do vento, nas tardes mornas de Outono. De resto, tudo era silêncio. Tudo era mistério. Eu, no meu carrinho tosco,  que o Fernando Pimenta me construiu, agora que o céu escarlate esmorecia, olhava expectante para o caminho de terra, que vinha do fundo da Mata, na esperança de ver regressar o meu avô, a calcorrear a derradeira ponte de madeira, depois dos afazeres da jornada.

Recordo, em sentida homenagem, os meus avós, e, neste particular, o meu avô, que se dirigia para mim em passo ligeiro, no desejo de me abraçar, naqueles finais de tarde. E eu, de bracitos abertos, desejoso do seu colo amigo e da capa com que me envolvia naquele Mondego de afetos. A capa, recordo-me, não era negra. Não era da cor da capa dos estudantes. Era azul da cor do céu. Era azul da cor do mar. Era azul da cor da Vida.

Foi um Tempo …
Quito Pereira        


8 comentários:

  1. Este é um texto do meu arquivo já com alguns anos, e que não era minha intenção publicar. Mas as fotografias do Paulo, levaram-me a trazer até vós mais uma memória.

    Estou certo de que muitos dirão que a prosa é desajustada aos tempos de hoje. Vivemos um Tempo de prosas musculadas e de combate de ideias. Do tempo dos Afonsinos, já não reza a história.

    Respeito quem assim pensa, mas tenho este estigma benigno de também me chamar Afonso.

    Hoje o dia começou húmido e sombrio. Depois melhorou e deixou ver, a espaços, um pedaço de céu azul, A flora campesina desta Beira Interior, agradeceu aquela promessa de patamar da primavera. O tal azul da cor da vida ...

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  2. Fiquei a imaginar-te "dono" de todo aquele choupal. Sim, porque quando somos crianças, o chão que todos os dias pisamos, é nosso!
    Lembrei-me do Mondego com o simpático areal!… Podem-me chamar maluco, mas eu gostava mais do Rio Mondego com ilhas e margens de areia. Hoje, é um Rio sem personalidade, um rio como milhões deles por esse mundo fora!
    Gostei do texto e em boa hora o Paulo te "obrigou" a postá-lo.

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  3. Quito, só por isto já valeria a pena ter publicado as fotos. Mas vale a pena por tanto mais...

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  4. Que bom que embarques na galera dos sonhos, num rio de lembranças. Levas-nos contigo às recordações da nossa infância, a sentir o cheiro do café feito nas brasas, a lembrar os nossos queridos avós. E não há desajuste na tua prosa, é a prosa de um tempo, do nosso tempo. Encantadora a tua prosa. Bjo

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  5. Escreves estes textos e depois eu que me amanhe para fazer um comentário sobre eles.
    O que poderia escrever já os meus antecessores escreveram, felizmente bem e...eu agora se quiser acrescentar alguma coisa, borro a pintura!
    Reforço apenas que continues a sonhar, mas sonha só! O Choupal e o Mondego não vão mesmo para esses lados...embora o Mondego tenha por aí algumas raizes!
    Até a um próximo texto.É isso porque espero!
    Abraço
    nota: apaguei porque os verbos estavam no singular!!!

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  6. Quito
    Estou a pensar como o Rafael. Dizes que tenho memória de elefante mas quando entras nos "Tempos que passaram e não esquecem" vais à minúcia e ainda bem, porque a tua prosa nos faz reviver o passado.

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  7. Memórias tão ternurentas, tão doces!

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