O sussurrar do vento uivante, calou a voz do mar. É assim, no
calcorrear dos dias, nesta cidade de todos os mistérios. Ali, para os lados da
Ponta da Piedade, aquela nuvem de cor alaranjada, pintada por Mão Sobrenatural,
esbate-se contra a linha de um horizonte infinito. É a noite que se pressente. A
cidade ganha outra cor. Um cenário de luzes multicolores, espalha-se sobre a
cidade. As ruas estreitas, povoadas de gente anónima, ganham outra dimensão. E
até as vielas exultam de vida, com o murmúrio noturno do burgo medieval. Aqui e
ali, a cidade revê-se nos seus mais diletos filhos. Naquela Travessa, à luz de
um candeeiro que debita um pálido clarão, nasceu uma filha de Lagos. Arminda
Nunes Correia, era o seu nome. Um historial ligado à música. Arminda, foi
cantora lírica que pisou, assiduamente, o palco do Teatro Nacional de São
Carlos. Também de Dona Maria II. A cidade, presta - lhe a devida homenagem, na
rua modesta em que nasceu. Uma placa em azulejo, eterniza-lhe a Memória, em
letras douradas. Porque não só de navegantes, vive Lagos. Porém, é o vento o
rei da escuridão. Da minha torre privilegiada, todas as noites mantemos um
aceso diálogo. São as copas das árvores, num estranho bailado, que me acorrentam
a um Passado remoto. E o vento, o vento que viaja do Promontório de Sagres,
vai-me acariciando o cabelo, num clamor de cumplicidade. Ele, o Vento, sente-me
como filho desta cidade de vetustas muralhas, que percorro há cerca meio
século. Por isso confia em mim e me segreda no seu uivar, notícias de antanho
de glórias e de tragédias, materializadas na estátua austera do Infante Dom
Henrique, a fechar no seu punho de bronze, os mapas enrolados, adivinhando rotas,
ventos e marés. E eu, que vou escutando, como se falasse, com os acordes roucos
do vozear da ventania, olho a Lua Cheia, que parece associar-se a esta minha
empatia com Éolo. E ela, a Lua, que parece derramar o seu clarão de cristal
sobre os labirintos do meu Sentir, ali tão perto de mim, bem poderia deixar
que, pela minha pena de simples mortal, eu manifestasse por palavras no seu
ventre cor de prata, o respeito que é devido aos nossos antepassados, heróis -
navegantes. Como se a Lua fosse, também, minha confidente e mensageira. Uma Lua
de papel…
Quito Pereira
Mais umas pinceladas de boa escrita sobre esta tua cidade de adopção!
ResponderEliminarDesta vez deu para ficarmos a saber "que não só de navegantes", vive Lagos!E aqui exaltas a figura de uma artista ligada ao canto lírico e de que Lagos se orgulha!
GOSTEI!
A Lua, cantada por poetas e por escritores, ilumina de igual modo com a sua luz cálida, seja em Lagos, Salgueiro do Campo ou Coimbra.
ResponderEliminarA luz é a mesma, os ambientes diversos e os sentimentos distintos.
Mas não se limita a iluminar objectos.
Ela é a musa inspiradora de quem, como o Quito, sabe ver aquilo que ela revela.
O Quito sabe ver aquilo que outros não conseguem descortinar.
Aquilo que outros, mesmo que vejam, não o sabem descrever.
Mas o Quito sabe ver e sabe transmitir-nos o que vê de forma aliciante, que nos cativa...
Depois do que o Rui Felicio escreveu e que subscrevo pouco mais há a acrescentar.
EliminarO Quito também nos traz a presença desse vento de Lagos que, entrando pelas portas de Sagres, um dia me levou ao desespero de o não aguentar mais e zarpar até as calmarias de Monte Gordo.
Quito, gostei. Um abraço.
Boa prosa.
ResponderEliminarPela foto da Lua, o eclipse foi total.
Com a normal lua cheia, a cor puxa para o cinzento, não para o avermelhado.
Isto é um aparte meu.
Um Abraço.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarTonito o comentário não entra?Apagaste o anterior?
ResponderEliminarNão há luar como o de Janeiro, mas o de Agosto bate-lhe no rosto! Isto diz o povo e o Quito confirma e confirma com um belo texto onde além da poesia da lua, nos dá a conhecer a cantora lírica Arminda, que eu, confesso, desconhecia.
ResponderEliminarMais um bom texto em final de férias!
ResponderEliminarMais uma poesia em prosa, com a cumplicidade do vento as palavras vão-se elevando até uma lua de papel...
E que bonita é esta tua poesia, Quito!
Aquele abraço.
Seja no formato de conto ou no suporte de crónica, tudo o que o Quito nos traz, obriga-me quase sempre a reler uma, duas ou mais vezes aquilo que ele escreve. Porque a riqueza da exposição literária, através de uma simples palavra ou expressão a que na leitura anterior não dei atenção ou que subvalorizei, me permite descobrir uma ideia profunda, uma observação sob uma perspectva nova.
ResponderEliminarNo primeiro comentário destaquei o sentimento que resultou da primeira leitura feita.
Essencialmente para sublinhar a capacidade do Autor, de observação de pormenores que passam ao lado de olhos pouco atentos.
Agora que cá voltei, embora mantendo o que disse da primeira vez, surpreendo-me por, numa segunda leitura preferir destacar as conversas que o Quito tem com os Elementos da Natureza, dialogando com o vento do alto da sua torre privilegiada, estabelecendo cumplicidades com a lua e apontando ao bailado das copas das das árvores sacudidas pelo vento, as potenciais razões que o acorrentam a um passado remoto. Ao seu passado vivido em Lagos.
O que o Quito escreve parece estar encerrado num cofre a que só ele tem acesso.
Só ele saberá as verdadeiras razões do que escreveu. São suas, são do seu intimo.
A nós, leitores, todas as interpretações são possiveis, mas nunca estaremos seguros se aquilo que dizemos coincide com o que está encerrado no cofre.
Este é o sortilégio da escrita. E da leitura...
EliminarE nós temos o privilégio de o ler e também o privilégio dos teus comentários.
Um grande abraço para ambos os dois.
Um diálogo poético entre o Quito e o vento, o vento mágico de Lagos!
ResponderEliminarUma lua, de papel,confidente e companheira de mistérios insondáveis!
Lindo.