Talvez por isso, quando se sentiu cair sem forças, o primeiro-sargento Pires se tenha virado para bater com as costas no chão. Entre o som furtivo e quase compassado das balas, primeiro sentiu um calor abrupto na barriga, depois perdeu a capacidade de se mover. Tinha sido atingido e agora olhava para o céu, à espera duma réstia de esperança. Perdera o medo da guerra, ganhara o medo da morte.
Talvez por ironia do destino, um embondeiro angolano protegia-o do forte calor e da luz do Sol, acarinhando-o com um lençol de sombra fresca, como se ali tivesse crescido durante várias vidas humanas apenas para chegar àquele momento. Nesse ténue sopro de vida, o soldado viu a marca do seu próprio sangue desenhada no tronco daquela árvore imponente, pediu-lhe silenciosamente desculpa por estar ali e sentiu-se entregue à sua própria sorte.
O som das balas continuou mais alguns minutos, ou talvez horas. Não sabe bem. Depois ouviu uma frase que o fez sentir-se invasor: "Angola é nossa!". Mais um tiro, único e certamente cirúrgico. Silêncio. Aquele céu era estranhamente de um azul igual ao de Lisboa, e talvez o seu Amor, a mais de cinco mil quilómetros de distância, o estivesse a ver. Talvez.
Pires prometera total lealdade à pátria mãe, num juramento de bandeira em Mafra alguns anos antes. Prometera defender com a sua própria vida a causa nacional. Agora, perante o iminente beijo da morte, nada disso fazia sentido. Era só ela, cujo toque de pele ainda se lembrava como se tivessem feito Amor há alguns minutos, que contava.
As nuvens permaneceram quietas e indiferentes ao som das pás do Alouette, que mais parecia uma música encomendada pela vida. Alguns homens que nunca tinha visto puseram-no primeiro numa maca e depois na cabina. Sentiu que levantava voo. Levantava mesmo."
bagaço amarelo
Blog «Não compreendo as mulheres»
O Rafaelito pediu-me para não deixar o blog desamparado... e o patrão manda.
ResponderEliminarE eu sabia que não me desamparavas!
EliminarE então com um bagaço amarelo o amparo é total!
Ao incompreendedor nato também os meus agradecimentos...e a esperança de começar finalmente a compreende as mulheres...para além da São Rosas!
Vale a pena!
És o único homem que me compreende!
Eliminarobrigado São Rosas, por me ajudares a ser um incompreendedor nato. :)
ResponderEliminarPara essas coisas, dispõe sempre ;O)
EliminarNão conheço o "Bagaço Amarelo". Mas apenas lhe direi, que escreve muito bem. Há sempre uns corajosos, que, pela sua pena, vão fazendo relatos da guerra crua, que muitos de nós sentimos no palco de combate. Não fui excepção, por vinte e oito longos meses. Assemelho a escrita de "Bagaço Amarelo" à de Manuel Bastos. A guerra é algo de proscrito, para muitos.Mas para aqueles que viveram, "in loco", todo aquele cortejo de misérias, jamais conseguirão apagar da memória aquela sua fase da sua adolescência.
ResponderEliminarSe a escrita me surpreende, pela positiva, também me surpreende a escolha do Paulo Moura. Na verdade, o tema transporta-nos para o mundo baço da guerra. Não só de bombos, cavaquinhos e cantares, se pinta as cores da vida. Apesar de, na realidade, essa componente ser essencial à amizade fraterna. E ao combate das ideias. Mas há a outra face da moeda. Porque o lado negro da vida, também existe, e nunca por nunca poderemos passar uma esponja sobre o sofrimento humano.
Por isso te saúdo, Paulo. Por dares a conhecer a escrita deste amigo, de quem não conheço o nome. E pela coragem de trazeres à liça, mais uma história comovente de guerra.
Um abraço a ambos
Pelo que me apercebi, este texto do Bagaço Amarelo é sobre o pai dele. E soa-me a ter sido verídico. Se não foi, parece.
EliminarAbre aço, Quito!
Já sabia que escreve muito bem sobre as mulheres, pelo que antes já li.
ResponderEliminarNuma coisa somos ambos semelhantes. No facto de, tal como ele, também eu não compreender bem as mulheres.
E por aqui se ficam as semelhanças...
Se nem as mulheres se compreendem, como pode um homem compreendê-las?
EliminarEu compreendo-te Sãozita! Tão bem nem calculas quanto!...
EliminarTu és única, Olindita do meu coração.
EliminarBom texto!
ResponderEliminarComo são bom outros que leio embora não faça comentários...
Parabéns!
O «Bagaço Amarelo» é um mestre.
Eliminar
ResponderEliminar" ouviu uma frase que o fez sentir-se invasor: "Angola é nossa!"
Esta é a temática séria do texto que mereceria aprofundada análise que não cabe, quanto a mim, no âmbito do blogue.
Para o Paulo Moura, pela sua boa intenção de "alimentar o blogue", mas só por isso neste caso, o meu abraço.
Eu também acho que este tema necessitaria de uma análise muito aprofundada.
EliminarEssa frase também me parece ser a «chave» de todo o texto. E abriria uma caixa de Pandora.
Abre aço, Vianita!
Para quem nunca esteve num cenário de guerra está muito bem! O tema dos desenlaces mais pessoais da guerra de Angola já foi amplamente alvo de escrita, em parte por pessoas que por lá passaram, havendo uma extensa literatura sobre o assunto, sendo dificil trazer algo de novo. Mas "vale sempre a pena quando a alma não é pequena" já dizia o Pessoa. Essa dos helicopteros Allouette III de facto não conhecia...
ResponderEliminarAnónimo, o meu padrinho de baptismo foi oficial para-quedista e fez toda a guerra colonial. Escreveu recentemente um livro, «a última missão». Isso é um relato bem detalhado e aprofundado sobre a guerra nas antigas colónias em África. Este texto é uma experiência contada por um pai e posta em texto por um filho.
EliminarPor regra os comentários anónimos não são tolerados...mas este vai fugir à regra, excepcionalmente, por consideração ao nosso amigo Paulo Moura, autor da postagem.
ResponderEliminarNão sei porque estes comentários não são identificados, ou assinando-os ou colocando-os como URL.
Combinado?